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sábado, 2 de abril de 2016

Caimbras [da memória]

 
 
Puxo os ténis às escuras e piso os sapatos largados de véspera num acto de desprezo, atirados como último resquício de uma semana a esquecer, esqueço-me do que é andar calçada e regresso à nativa forma de sentir a terra, despojada de outros quereres que não sejam os gatos, o cão, os livros, nada saber de ruídos de aparelhos ou pequenas luzes que piscam no alerta da substituição da lembrança.
Aperto os atacadores e sigo com o Alberto em passo certo e rápido, o ar frio da manhã é agradável e a ausência de trânsito traz a natureza para perto em cheiros e sons.
Não há pressa.
Ele demora-se a cheirar os troncos das árvores, eu a descobrir onde os pássaros moram, ele a farejar o último cão no canteiro de flores, eu a apreciar os botões ainda fechados mas muito coloridos à espera do calor.
Corremos, nem sei quem mais feliz.
Mas uma maldita caimbra  estanca-me a alegria e depois de esfregar o gémeo dorido sigo de bicos de pés, no habitual uso dos músculos como se de saltos estivesse calçada. Aos poucos vou apoiando toda a base sobre o terreno e a caminhada lá prossegue, mais lenta, azedada pelo contratempo, vou marcando o chão da mesma forma que calquei os sapatos esquecidos, à bruta e contrafeita, uma caimbra na memória racha-me a musculatura do passado e as sapatilhas de ponta arrumadas, batem-me no rosto com a violência de um golpe de ar gelado, queimando a pele pelo revés que as coincidências encontram.
Regresso. As flores apanhadas por um raio de sol abrem-se magnificas.

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