Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

sábado, 27 de junho de 2015

O Doutor


 
A maior parte das vezes tomava o comboio que partía da vila e fazia o percurso ao longo das praias largando os veraneantes, um toque de sino puxado por cabo fino e o transporte estancava num soluço. Nunca saía, quando chegava ao final de linha mudava o encosto para o sentido em que havia de seguir, sentava-se no último lugar, traçava a perna e sentía-se feliz.
Não era um homem de praia, era um homem de olhar o areal, o mar, as gentes, o colorido, os sons, de os guardar nos olhos e quando de regresso à vila acomodava-se na esplanada do costume até ao final da manhã a ler o jornal, molhando a garganta no gin tónico, mais tónico que alcoólico.
Vestía sempre de branco ou de azul escuro e nunca de outras cores, cumprimentava sem som e num gesto de cabeça, devolvía palavras curtas de agradecimento acompanhadas de um sorriso claro e por algum motivo inexplicável era conhecido por doutor, referência que nunca contrariou ou que alongou com o sobrenome ou até o de baptismo.
Durante o mês de Junho o Dr. era uma figura da vila.
E a vila, o pequeno combóio, o areal dourado, o som das ondas a morrerem junto aos gritos de alegria dos banhistas arrepiados e de pele bronzeada eram o bálsamo de vida para o Dr.. Todas as cores de toalhas estendidas à espera dos seus ocupantes ou os baldes esquecidos das crianças enchiam a sua mente de uma felicidade sem palavras, comovíam-no. O mar dava-lhe um nó na garganta, tomava um gole do gin tónico e escondia a emoção por detrás do jornal aberto.
Um ano não veio em Junho, esperaram por ele no mês seguinte, algum transtorno de maior, mas nada. Nem nesse ano nem nos outros. E depois de algum tempo, o combóio deixou de ser lucrativo e parou de vez. E num Inverno violento vieram ondas fortes e altas que galgaram as dunas e derrubaram café e esplanada e não houve mais ânimo nem dinheiro para pôr tudo de pé outra vez.

Sem comentários: