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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Lá e aqui



Ainda não havia muito calor àquela hora da manhã, os pássaros, barulhentos, entretinham-se na árvore fronteiriça na lida diária e ela gostava de observar os ramos agitados pelo pousar de lá para cá pelo frenético do movimento [ Abri o caderno, os pés ainda mornos do saír da cama gostam do sentir da madeira, daqui a pouco esquecidos desse momento hão-de arrefecer, só a mão encostada à caneta e a ela, talvez uns passos atrás dela observando-a, sintamos o calor de Verão, aqui neste cómodo puxo o xaile ao ombro esquerdo].
As duas mãos abriram as janelas trazendo o cálido do ar da rua para dentro do quarto, o som dos pássaros e vozes difusas de pessoas que também tinham as janelas abertas, uma brisa soprou-lhe os cabelos para o rosto, enfunou-lhe a camisa de dormir de cambraia, fez levantar as cortinas como dois fantasmas que se alongaram pelo cómodo até jazerem moles de novo junto aos vidros [A luz do candeeiro fabrica sombras nos móveis, imobilidades que olho e nada vejo mas mal me concentro nas letras adivinho ataques ao meu pescoço ou o estalido traidor denuncia a aproximação para o meu sobressalto].
Apoiou-se nos cotovelos, o parapeito de mármore agradavelmente frio e macio [Há vezes que não sei o que escorrega melhor, se a tinta da caneta para o papel, se as ideias para a escrita]. Deixou escorregar o olhar para longe, para além da árvore, do chilrear da passarada, das vozes quase sumidas de outros quartos que conseguia imaginar mas não quería [Um desses quartos poderia ser este, aqui mas não agora, lá um tempo de calor, este só no tempo em que o fabrico no verbo].
E quando os olhos lhe pareciam vagos, perdidos por não acharem ponto de interesse, fechou as janelas, correu as cortinas e sentou-se a uma mesa, abrindo um caderno.

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