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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

02/2005-23/12/2015




AMO-TE GASPAR
 
 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 12



[...]

Aquele foi um tempo de infortúnio porque de desperdício, porque de fartura, de riqueza e de felicidade e de tristeza e de tanto que me enchía a boca como as mãos na direita ou na esquerda sem escolha preferida porque chegavam sempre sem sossego e eu agradecida corría ao papel que tinha ou à memória que aguentasse para registar o que não se estancava.
Tempos de mãos rotas, a Versailles ficou como um marco de loucura que observo como vicio que receio de voltar a render-me e do lembrar tanto que me esqueci, ainda tanto que redescubro como escondido no céu da boca a pensar que já o escrevi nalguma página arrecadada, amachucada e perdida por querer perder, reencontrada por reviver afastada assistindo aos actores de mim e outros desconhecidos, à espera, entre o ruído da vida de muitas palavras a entrarem e a saír, a sua vez de dizer.

 
[...]
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Julho 2014)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O bater do coração (trinta)


 
Entre o uso das mãos nas mil tarefas de obrigação maquinal, as de prazer à escrita e também as de surpresa na surpresa do reencontro.
Abraço profundo, longo, apertado, muito enlaçado como se os dois corpos reconhecessem de imediato as suas formas de ajuste, respiradamente precisado.
Afastamo-nos e deixamos presas as mãos na ligação do pensamento, como estás que te tinha em tanta saudade, e dessa saudade não lembramos a dor da distância nem a lonjura do ausente, só cresce a bonomia da presença na resposta, estou tão melhor contigo aqui, anda, falemos de nós e das nossas pequenas coisas.
Caminhamos no silêncio de mãos dadas, braço enroscado, poucos passos dados e paragem, de frente a frente os olhos contam, observo a cova do pescoço, a veia palpitante de tanta felicidade do bater do coração.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Perder-se por adivinhar



Não tinha como saber, mas dali a algumas horas, tudo o que havia desejado com o desespero de quem fica para trás esquecido havería de se concretizar.
Antes não o tivesse escrito. Na fúria riscada das letras entre as lentes muito aumentadas de lágrimas que primeiro tentou conter, depois pingaram para o papel, depois mastigou à medida que tudo lhe saiu na tinta da raiva, em golfadas, no despejo do alivio como quem já não tem nada a esconder, a perder por perdido por a terem perdido para trás, esquecida.
Um pedido de desculpas tornou-se numa carta de demissão.
Despedia-se, largava tudo, deixava-os, que fizessem o que quisessem, agora haveriam de ver como era importante o apagado lugar que ocupava, os passos minúsculos e silenciosos que ninguém se apercebia, o chamamento que ninguém haveria de atender.
E no ímpeto da revolta deixou-se levar.
Contou do sigiloso das reuniões, dos segredos que escutava a meia-porta, do que pensava de todos eles e de cada um, de si e de como a deixavam para trás, humilhações, ignorâncias, gritos, deshoras.
Amachucou as folhas e deitou as mãos ao rosto.
Adormeceu cansada e cheia de pesadelos.
No dia seguinte foi chamada ao gabinete e dispensada por excesso de pessoal.

 

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Da pedra e da árvore



Não gosto que me façam promessas. Tenho a expectativa de um adulto, a decepção de uma criança, a memória de uma rocha. Espero que se cumpra o que digam sem o sublinhar da jura, entristeço-me deveras pela falha e fica gravado em mim uma desconfiança pela palavra que tomaram como vã, esvaziada do sentido que as demais palavras possam ter a partir daí provindas dessa, dessas pessoas.
Não gosto que me façam contar com coisas que não contam fazer apenas para me por a andar.
Para não me ouvirem mais.
Porque até não falo muito mas o que falo pede troca e é essa devolução que aborrece porque obriga a olhar-me e a dizer sim e não, claramente sim e não, ou nunca talvez, e por isso promete-se adiar que na próxima haverá tempo para o tempo de claramente haver sim e não. Talvez.
Da pedra da memória reduzo-me à minha realidade de árvore.
Não posso fugir do que sou, do que sinto, dos sins e dos nãos, e nem mesmo dos talvez alheios que me sobrevoam e não escutam o meu silêncio. Por vezes.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Quem é quem



Momento de pausa em que nada vem, em que tudo chega no propósito fora do contexto do momento, chapadas de pensamento, caneta enroscada na tampa.
Pergunto-me se de tanto escrever as letras acabarão um dia coladas nas paredes, saturadas do tempo do papel horizontal, libertas finalmente as gentes que me fazem manto e em figura que se possa ver, acomodadas no meu sitio de eleição como seu, casa minha como posse sua a segurar a porta e a abanar a cabeça levemente dizendo que nunca me conheceram a quem por mim vier saber.
Serão de tamanho e espaço que possam agarrar as minhas coisas, amachucar as minhas folhas escritas em interrogação, guardando na gaveta ao pé da caneta de aparo como objectos largados por um inquilino esquecido e bizarro que deixou para trás pertences que se divertem a datar como estória fantasmagórica que podem entreter nos serões para amigos.
Pergunto-me do cansaço das vigílias, dos reflexos deles nos meus espelhos, de algum fio de cabelo meu perdido sobre os seus ombros, das vontades de não saberem a quem retornar, a inquietação no seu escrever sem adivinharem como falam do que não sabem.
Chapadas de pensamento, quem me libertou.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Cadernos (novos, velhos e revisitados)



 
De novo, tudo outra vez em golfadas, como se a recorrência dos sentidos fizessem salivar palavras atrás de palavras, incontidamente, um desassossego tudo outra vez, todos eles outra vez e sem pedir a sua vez a desmaiar cenários em segundo plano e a diluírem importâncias no acto de se acharem mais que tudo, mais que eu, eu que sem eles acabo por não me conhecer e eles sem mim a não existirem, partilhamos oxigénios egoístas e a chantagem de contar quem precisa mais um dos outros é mero detalhe para inicio de conversa, que no final o que sobra desta inquietação são páginas, muitas delas a guardarem segredos que preferia não saber, muitas delas arrecadadas para esquecimento futuro e negação de ter estado como testemunha presente a lavrar o que todos sabemos, coisa quase pública, para quê tanto recato se me impelem a ler o que não quero ouvir, a escrever o que não quero saber, a sofrer por dores que já sendo deles as tornam maior em mim, sentidos, tudo em golfadas impresso em cadernos que se amontoam numa letra que quando parece estar a definhar-se logo se aviva, tudo de novo.
Outros novos.
E as mãos cansadas alisam as folhas, fecho os olhos, ainda danço.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Sou eu


 
A tua voz.
O teu nome na minha boca a dizer o meu. A tua voz. Muitos sons a trazerem os passeios, as gargalhadas, a troca de olhares cúmplice, as frases tontas e brejeiras, algumas palavras soltas a revelarem vontades de estarmos em companhia a dizer nada, a tua voz a lembrar o quanto existimos quando nos atropelamos a querer falar novidades de tanto tempo sem estarmos próximo e a velocidade do pensamento a ir buscar o outro onde nos deixámos na última vez, a tua voz, o teu dizer como uma miragem, um quadro imaginado, palavras que se aspiram a pôr no papel e finalmente se conseguem escrever tão fácil como alumiar um quarto escuro.
Minutos da tua voz.
Fecho a porta e fico-me até a luz se extinguir.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Faz hoje anos que nasci



Mais do que o costume, ontem estiveste comigo. Talvez a adivinhar as horas em que haveríamos de estar juntas, eu nos teus braços, tu de olhar analítico a observar se eu estava completa. Faz hoje anos que nasci e a tua companhia ausenta-se em mim tão mais profundamente quanto a memória que te tenho. Acho que o que sinto falta mesmo, hoje, é tu vires pela manhã até à minha cama e dizeres baixinho parabéns. Parabéns. E eu preguiçosa, esconder-me sob o quente da roupa, enrolar-me e depois esticar-me e dizer coisas ininteligíveis.
Não sei se me visses agora se me acharías completa, afinal é tudo tão relativo e os meus cem anos ou mil ou cinco não acompanharam as tuas rugas, os teus sinais de mais saber, tenho vindo a aprender tudo sozinha, trabalhos inacabados de quem sou digo-te eu, tanto a descobrir.
Não vieste à minha cama esta manhã. Mas eu digo obrigado.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Campo de Palavras (26)



 
A grande questão é a memória das coisas, a memória das palavras, a memória das coisas puxadas num tempo que não se pede e aí estão elas, vindas em palavras à boca que atafulham, palavras que se pensavam perdidas por não recordadas, inexistentes por escondidas ou tão bem guardadas que se perdera o tino ao sitio para as ter de novo na boca para contar e dizerem-se descobertas quando afinal sempre foram nossas, reencontradas anos depois num raciocínio inicial de estupefacção [porque me fui eu lembrar disto agora?], depois admiração [nunca mais tinha lembrado que tinha acontecido], êxtase [como foi belo e nem sequer me apercebi] e o recolhimento do momento [não devo esquecer de novo], palavras que se moldam da memória como palavras frescas e servem renovadamente para contar como se foi feliz.
 
 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A bolha




Houve um tempo em que dormia muito, muito mesmo, quando tinha horário para isso dormia para lá do meio-dia, uma da tarde, um sono profundo que não ouvia ruídos de casa nem outros barulhos de fora e despertada, havia sempre uma contrariedade por achar que não tinha dormido o bastante ou porque tinha sido interrompida no melhor dos sonhos ou de coração disparado, tão mais atormentada a meio de um pesadelo.
De um dia para o outro deixei de dormir.
Não foi de grande quantidade para uma redução gradual, foi literalmente dormir na véspera e na noite seguinte não voltar a dormir , não fechar os olhos, não precisar de desligar do mundo acordado para o mundo do sono, quanto mais cansaço sentía mais energia acumulava.
Depois de um par de anos a tentarem reparar o defeito que o meu sono tinha, voltei a dormir. Mas em doses pequenas, ou pelo menos para o que é entendível para o padrão normal da maioria. A mim chega e até acho um desperdício.
É que entre estes tempos de fartura do isolamento nos sonos e da ausência desse mundo, criou-se uma bolha ao meu redor do diâmetro dos meus braços abertos, medida que temos em nós como território privado. E foi nele que finalmente aceitei quem me visitava de mim, sem estereótipos de loucura ou desvios à personalidade.
 
 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Justo, justa


 
De sentinelas, suponho que a aguardar que o ar se aligeirasse para retomarem o voo, demasiado branco a tomar a opacidade do cimento, do rio, do asfalto, da ponte desaparecida algures, um fio de vento frio a levantar algumas penas e a imperturbável solidez de soldados aprumadíssimos não lhes tira um pio, sacudo os braços até as mãos se agitarem nos bolsos como um choque eléctrico.
Nevoeiro. Nevoeiros.
Não é justo estas gaivotas morarem aqui. Aguardarem num terraço cinzento sem cheiro que conheçam que não seja gasolina, comida de lata de lixo, ninho em tejadilhos de carro.
Não vejo nada, tudo tão branco que é capaz de me comer as mãos se as esticar adiante e à frente é a água que separa as duas metades do meu lado e do outro, a metade em que sou soldado, a parte em que aguardo o ar se aligeire para me fazer ao voo e assustar os pardais, comer do lixo, abrir as asas a mim mesma no olhar incandescente de um cigarro acabado, minutos de sentinela em que as opacidades se rasgam no frio e oferecem verde, encostas a caír a pique até mergulhar e voltar de novo à superfície, limpo, limpa, justo.
 
 

domingo, 6 de dezembro de 2015

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº2



 
Hoje consigo-lhe dizer o medo de menino sem disfarce ou recuo. Mas o relance da sua verticalidade inalcançável ainda me faz engolir em silêncio para só depois me referir ao medo do antigamente. Nunca digo do frio que me atravessa as costas como uma lâmina gelada, hoje, ainda hoje tão presente e tão mais bem explicado pelo saber das palavras do que quando garoto a olhava cá de baixo a correr e a vía fechada.
Mais medo fechada do que aberta.
Ou dos sons abafados de desespero a pedirem um socorro ou do nada que se ouvia quando escancaradas à curiosidade.
Nunca lhe vi um pardal a enfeitar o parapeito ou até mesmo um insecto enfeitiçado no brilho dos reflexos dos vidros a bater teimoso, nunca lhe vi nada e por isso o engolir do medo a calcar para dentro sem entender a existência de uma janela única numa parede sem casa.
Um rombo a mostrar vergonhas para quem lhe tivesse a coragem de espreitar ou a soar pedido de perdões no encoberto vergado das duas metades a fazerem-se fechadas, um quase olho dominante e estropiado, vigilante dos que a passarem engolem silenciosos algum crime sob pena de se acharem do lado de dentro.
Consigo dizer-lhe o medo mas só de longe.



(in Das portas & janelas-Vol.2, Abril-2015)

 
Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sábado, 5 de dezembro de 2015

Instantâneo - Episódio treze



Estas coisas do preceito têm muito que se lhe diga: Elástico, caneta, caderno, o café. Mas sem o toque de mão, inspiração que traga ao final dos dedos o desenho mágico do conjunto das letras unidas para formar a emoção, nada feito. Não há mesmo nada que componha o resto que substitua o principal. Notei então os pés frios, a falta de peúgas na extremidade em semelhança com a que segura a ferramenta da escrita. Vestidos estes e aquecidos, ainda assim o verbo perro na folha branca a beberricar golos de um gosto ainda mais desgostoso que o já habitual instantâneo. Descoberta feita na troca pela fiel caneca a pedir reforma, o conteúdo talvez mal habituado a coisa de pó e água quente não se conteve e rebelde, atirou-se a um acre difícil de tragar. Mas agora que as idéias fervilham a questão da opção: Fazer novo café ou deitar-me a escrever? Ou se começar pela última, a tradição acabará, quiçá a trair-me e a interromper de novo o verbo? Uma piada este dilema, e enquanto a cogitação se dilui o que resta de liquido na caneca nova arrefeceu e está bom para a terra. Desconsolada, mãos no regaço mas de pés quentes, trepa o gato amarelo que é mais laranja que amarelo para o colo, duas voltas, três voltas e não contente com o leito despacha-se para o caderno aquecido pela luz do candeeiro. Talvez faltasse ele. E o outro que chega de seguida e se aninha em mim a ronronar, perdendo-me de toda a escrevinhação ainda palpitada. Ele há preceitos, o mal foi da caneca e nem sei porque a escolhi.
 
 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

[Mais] Uma caixa


 
Falou-se, falámos, apresentou-se números, diagramas, slides, objectivos cumpridos e metas a alcançar para o futuro próximo. Comentou-se o que tinha sido o ano que ainda não acabou, as diferenças, as expectativas. Lançaram-se compromissos, selaram-se. Fez-se jus ao trabalho feito e ao empenho tido pelos resultados à vista de todos, agradecimentos.  Eu pedi para dizer uma coisa porque era a última vez que estava com eles e podía dizer coisas sem serem coisas de números ou de relatórios, dizer uma coisa sem troca de receber, dizer a aventura que foi e o prazer que senti, na concordância e na discussão, dizer uma coisa simples como o orgulho de ter estado entre eles e com eles, de os levar com um sorriso. Disse. Depois colei a língua ao céu da boca porque o satélite cruel enfiou as emoções de cada um dos seus rostos, do silêncio no inicio da frase incompleta, no aperto das mãos dadas nas imagens que me alagaram os olhos e o todo do pestanejar foi o suficiente da coisa dita.
Fim  de emissão.
Fechei a caixa e arrumei-a ao lado da das sapatilhas de ponta.
 
 
 
Serhat, Chus, Ibtissam, Akim, Luca, Elisabeth, Didier, Moustapha, Milorad, Martina, Martine, Patrick, Alfred, Johan, Riccardo, Chrisi, Elena, Mohamed, Lindsey, Marina, Denise, Nuno, Ana, Jorge and so many others, TY for these years.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Travessias do Rio - 5


 
Manhã gloriosa, o sol a jorros a entrar pelas janelas do pequeno cacilheiro, do lado de fora o portentoso cruzeiro a fazer parar toda a navegação, ondulações em replicado que enjoam os mais sensíveis, outros amedrontam-se na diferença de tamanhos, nós cá dentro, ele lá fora, é assim que se referem, esquecendo o Rio a oferecer a manta única que aquece o bojo sem ligar a dimensões ou olhos fascinados pela brancura do casco do gigante.
Acenam os turistas de um alto a desafiar o Cristo-Rei, os pequenos retribuem, eu olho o Tejo e controlo o apetite de me lançar e nadar, cansar-me de braços e pernas, mergulhar e brincar nesta água imensa. Imagino o festim, depois do barco grande, uma suicida.
O cacilheiro segue o rumo, todos já pendurados à boca de saída para serem os primeiros a libertarem-se na correria.
Ainda há sol a entornar cá para dentro e o Rio espelha-se do céu muito azul, mas acho que ninguém reparou.
 
 
in Travessias do Rio, Novembro 2015

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Tudo o que não se vê [é tudo o que tenho]



Apagam a luz. E uma claridade ilumina os meus olhos, os meus passos, as minhas mãos. Tudo visível, palpável, as cores nomináveis como semelhantes a frutas que se trincam ou odores que em fumos espessos se infiltram nas narinas saindo pela boca em palavras. Comoção. Alegro-me de tanta coisa que não tenho adiante e é tudo o que possuo, os dedos a tocarem em invisibilidades da memória, abraços, discursos repetidos no diálogo a outros, as saudades de os rever, a claridade a engrandecer até à cegueira.
Abro os olhos. Todos os ruídos abafam os cheiros das palavras e todos os revisitados se afastam, deles nem um ponto pingado como um descuido da caneta demasiado cheia, demasiado parada nos dias últimos.
 
Ligo o interruptor e abro o caderno. As páginas cheiram a velho. Folhas em cru sem nódoa de verbo, encostadas a outras com muitas letras e alguns riscos, desenhos que não querem dizer nada, apenas traços de quando a claridade chega e a vontade de escrever é demasiada que a refreio na contenção de uma parede de tinta azul-china. 
 
Andei triste, até a vontade de fazer traços me seguraram. 
Mas fecho os olhos e no toque do aparo da caneta derrubo qualquer um.
Rejuvenesço páginas e cores de frutas vêm saciar-me a secura de tantos dias de escuridão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Carrossel


 
O mundo roda indiferente ao mundo parado dos desgostos ou das acelerações do prazer, dois tempos de um só tempo em que o conflito não mete o dedo, trava o movimento, encrava os dias e faz regressar ao que de melhor se teve, emenda a dor. Fica-se na sensação de se querer mais e na ilusão do repetir por voltar ao melhor acaba-se por se estampar contra uma parede por não se saber contrariar a rotação do que já passou. Ou então, foge-se. A agressão da primeira vez foi o bastante para não a procurar no movimento clonado, deixa-se ir, flui-se nos tempos dos dias até ao esquecer, até não ter mais importância. Alimentam-se as vidas com os passos acertados do mundo, roda-se à roda da vida num ciclo lento para que as tonturas da felicidade, as pisaduras pelas quedas no abismo não incomodem as voltas perfeitas de um tempo que não é de ninguém.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Uma linha



O céu está perturbadoramente azul-tranquilo, na carteira agitam-se as palavras aquecidas entre páginas apertadas do caderno a par com o metal das chaves e a sujidade do dinheiro, cada passo, cada corrida misturam o horizonte e nem mesmo assim a aproximação ao alto que parece tão limpo e tão fácil de alcançar se chega mais perto e bafeja de fresco o que arde em combustão lenta e silenciosa nos pensamentos rubro-cinza.Teimosamente, o dia há-de continuar apostado nessa cor, desinteressado que a noite já se tenha posto nas palavras do peito - as ditas, as escritas e as de consumo pela labareda sem se ver - e quando enjoado da monocromia quiser trocar com a noite de profundo, há-de haver no peito uma vontade de perturbação de azul-claro, a limpidez do desejo de ser dia de novo, de correr e escrever nas páginas palavras que saram queimaduras, chegar a casa quando o coração se aquieta na linha que separa as duas metades do céu e do homem.

domingo, 15 de novembro de 2015

Vidros



 
Basta uma palavra, uma sugestão nas palavras que se arredam na ponta da língua como sopro invisível, uma suspensão do discurso à espera que o outro adivinhe no receio da materialização do verbo e o cristal do momento parte-se, nada mais se escuta para além dos cacos, dos gestos sem som a prenderem o braço e os olhos muito abertos a pedirem calma, contenção na atitude, palavras e mais palavras que se enrolam como fios muito finos fabricando um casulo de miséria e ira, sob os pés os cortes sangrentos do saber a dilacerarem canelas, abdómen, peito até enfraquecerem a garganta e nada se poder responder.
Basta.
Agarram-se os pedaços caídos das reticências, cacos de cristal adivinhados e como todos os vidros, todas as palavras que contam veneno, não passam de coisa quebrada, defeituosa. De uma aresta faz-se uma arma.
 
 

sábado, 14 de novembro de 2015

[Desres]Guardo[s]



 
Dobro-me sobre as várias camadas de tempo que me cresceram de dentro até a pele se estender no hoje, resguardos de memoráveis ignorâncias em que a perfeição se sustinha na crença do bem, no alcance da mudança pela evolução do belo, pelo amor, pelos amores, um continuado achamento de que a conquista era possível pela palavra, honras calcinadas que deixaram fendas a um outro crescer permitindo um invólucro encouraçado mas ainda ligado a infantis e doces juras de princesas e dragões, sendo este revelado afinal como a coragem, personificações que passaram a duvidas, sombras, condicionais vingativas ao próprio na revelação da pequenez do homem, a decepção e o desencantamento, quantas poesias a filtrarem a verdade ou desta só a primeira como álcool dormente a dobrar o corpo para resguardar a dor e esquecer o que se foi, a perfeição de nada saber, dobro-me em vénia ao fundo dessa leitura e acho as outras que me trouxeram até aqui, quase selada, receios que me levem as estórias que tenho guardadas para olhar em dias de chamar a esperança.
 
 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Je suis Paris




mon coeur est avec vous mes amies
pas de place a la peur


 
 
 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Pequenos pontos


 
 
Procurava os números na ordem sequencial e unia por linhas os pequenos pontos que os assinalavam, aos poucos a imagem aparecia descobrindo um rosto, uma casa ou um animal. Era um passatempo que figurava ao lado das palavras cruzadas nos jornais diários, deixavam-me entretida de caneta no bico a deslizar de algarismo em algarismo até chegar ao último e sentir-me grande a par com quem completava as quadrículas do cruzadismo. Sorría triunfante na tarefa, no boneco à vista.
Tenho tentado seguir os pontos imaginários que me ligam entre os que me ocupam a maior parte das horas do meu dia e de uma forma ou outra, perco-me nos números por não os achar ou por não existirem, pelas pontes que não consigo construír para a meio andar até eles, uma derrocada antes da edificação total na simples palavra ausente ou na cacofonia, ou porque a exigência das minhas linhas cada vez mais finas, cada vez mais fortes se enferrujam na sensibilidade de não querer entregar a surpresa, o triunfo de forma fácil, magoada talvez, porque a importância de ser pequena ou grande deixou de ser importante e tudo é tão mais importante quando a imagem é nítida sobre o que sou, mesmo que toscamente unida em pontos.
 
 

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Magusto (dos desprezíveis)




Acontece que em dia de castanhas toma lá uma pera, pumba! mesmo no meio da tromba! Taruz, uma para assar que é como o povo diz, nem sabes de que terra és, a tradição aqui mesmo com provérbios não vale de nada, ou já valeu, ou melhor, valeu enquanto não houve outro que se chegasse pois já nada é mesmo o que parece e até as castanhas em dia de Magusto se estalam em assadores conectados a electricidades melhores que abanões a força de braço, sirva-se enquanto houve barro e este parecia porcelana, agora o que está a dar é desconfiar e desprezar, menosprezar, fazer pequenino e até destroçar em cores pardacentas até esvanecerem na memória do branco o que antes serviu a palete de cor tão precisa quando nada mais se conhecia. Porque se precisava. E servía. E até, vá lá, vá lá, confesse-se, apreciava. Pelo chão, uma mão-cheia de cascas de ingratidão. E como os ouriços picam, afastam-nos com as biqueiras...

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desencontro [com a morte]




Não sei porquê. Mas esperei ficar sozinha para abrir a gaveta, tirar a pasta castanha, soltar os elásticos e pegar nas folhas. De novo. Com rapidez, não fosse entrar alguém e ver-me a ler, um flagrante que não pretendía explicar, tanto mais porque nem sequer tinha que dar explicações, casa minha, escritos meus, mas aí é que a coisa fica difícil e mentir é que não sei, não é meu, alguém abusivamente imitou a minha caligrafia e pôs-se no meu corpo, coisas de dentro como roupa intima que só o próprio mexe e usa e mesmo sem dizer nada já se sabe que não é para mais ninguém andar a bisbilhotar. Uma, duas páginas, os olhos a apetecerem devorarem todas as letras mas também com vontade de se demorarem para entender pormenores, aonde é que eu andei neste tempo e quem fui que não me recordo, como se fosse mulher num corpo que não se apercebeu que não teve tempo de crescer à vista do mundo e incapaz no volume, rompeu-se, vazou-se, morreu-se.
Não me encontro em página alguma na minha morte. Guardo as folhas à pressa, ouço passos, fecho a gaveta.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Uma folha só e chega



 
Fosse pelo Verão de S.Martinho e as águas enxugadas ou por meia-dúzia que se escondeu à minha espera ou ainda por curteza de vistas, bem rapadinho, agarrei um monte de folhas.
Mas a mania das perfeições levou-me à escolha e tirando uma porque estava ratada, outra porque cheirava a podre, aquela porque estava mais verde que vermelha e enganava, na sobra ficou uma.
Afinal é quanto basta.
Porque vai-se a ver já aqui passaram tantas que se fizeram da árvore e hoje olho-a serena e é Outono como as de seus pares.
 
Ou ímpar?
 

domingo, 8 de novembro de 2015

Instantâneo - Episódio doze



A esperteza do café instantâneo não reside absolutamente na preguiça da sua rapidez. Engana o olfacto, pisca a visão e consola nos mesmos tempos imediatos uma boca ávida do vicio da cafeína quando se se pretende dedicar a outras coisas mais prementes. Logicamente, a deturpação dos sentidos tem uma duração de curta vida e logo que arrefece todo o ardor do instantâneo está votado ao cano, ou seja lixo, ou noutra solução, é empreender fazer um outro o que significa que o tempo poupado é perdido a dobrar. Mas se é do falso que se fala, e do cumprimento do seu papel, honra lhe  seja feita que à custa de muitas canecas já decorei o cenário e o desmontei mais rápido que a coroa de creme teve oportunidade para se esvanecer no topo da beberagem escura. E a verdade, é que as proporções com o real não foram chamadas ao tema nem tiveram influência no correr da pena, mais verbo desenhei por entre goles de café de brincar do que chá à séria, as personagens não se incomodaram e o à-vontade da desolação no silêncio de portas a fecharem-se ou reencontros no apagar de candeeiros de mesinhas de cabeceira seguiram até ao ponto final com a minha boca na louça à procura do vácuo por já nada mais haver de beber.

sábado, 7 de novembro de 2015

Empréstimos



A certa altura aborreço-me e empurro tudo para a frente, não me apetece mais, há um certo cansaço nas costas, nos braços, nas mãos e nas letras, as folhas enchem-se à medida do cinzeiro, perdi a conta ao tempo em que aqui estou, não é dia de relógio, cheguei de noite e hei-de ir embora quando apetecer, há mais escrita no que penso e vou falando nas palavras mudas que troam no peito do que as que ficam penduradas no pingo de tinta, não me apetece mais, talvez já tenha dito tudo o que possa dizer e o resto é apenas isso, restos, bocados que ninguém quer levar, verbo de 2ª, uma rapadura que me entretém enquanto finjo que vejo alguma coisa pela janela defronte da secretária, tudo limpo para pôr cotovelos e caderno adiante é assim que escrevo, restos, aborrecimentos que ficam por descrever o que me vai por dentro, nunca gostei de escrever sobre diários e no entanto tenho um diário desde que soube desenhar as primeiras letras, como é irónica a vida, devia escrever sobre mim se me emprestassem o meu corpo. De novo.
 
 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pequenos e grandes



Perfiladas como um cordão branco, sentinelas, o nevoeiro não deixa alcançar mais que prédios, a queda para o traçado das ruas, elas esperam, não há rio que se veja e donde se diga que elas vieram dele, que é meu, dentre este regimento aprumado confunde-me a faladora e não a distingo.
A uma ordem sai uma e depois outra e vão-se todas.
Rompe o sol.
As gaivotas tão bem comportadas de há momentos brincam no ar, soltam gritos gargalejados da liberdade permitida, sigo-as até entontecer nas voltas afastando os restos de fiapos do nevoeiro, dois pardais vêm debicar coisas invisíveis no chão acimentado do terraço, dois montinhos de penas numa poça de sol, cumprimento-os e esvoaçam para outra distância.
Persigo a vontade de meter conversa, novos diálogos, destes nunca houve oportunidade mas a tentativa leva-os de vez como um risco rápido a cortar uma folha, não de mim que fogem mas do bando terrível que em regresso aterra ao espaço que tomou como seu, avanço e encaram-me de asas abertas.
Agora entendo o silêncio dos pardais.
Encosto os joelhos ao muro e deixo o sol tomar-me, o rio cega como uma folha-prata.
 
 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Bagagem dos sentires



As viagens, é mesmo disso que vou sentir mais falta. Mas não das viagens trajecto, passeio, visitas, protocolos, todo aquele emaranhado de cortesias repetido das apresentações, saudações, vou sentir a falta da proximidade do tom de voz, do cheiro, das gargalhadas, dos tiques de sobrolho quando nervosos, das confissões na predilecção de certa rua ou do fechar de olhos por segundos ao deliciarem-se no chocolate quente para logo retomarem a postura, do corado das faces ao serem apanhados no prazer do fumo às escondidas, no aperto de mão franco da despedida e renovação do encontro, nos erros dos idiomas praticados no simples agradar, na discussão inteligente dos projectos. Saudades de gente inteligente com emoções. A rir porque discordamos.
Tenho malas cheias destas viagens.
Farei outras talvez. Ou não. Não com estes isso é certo, os nossos rumos separam-se sem tristeza com o tanto de ganho e um abraço a desejar boa viagem.
 
 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Travessias do Rio - 4


 
Cruzo os braços ao peito, traço as pernas, vejo o farol a distanciar-se, onde será que param aquelas fotografias que o meu pai tirou a mim e à minha mãe no Cacilheiro, eu a apontar na direcção de Lisboa, choramingona, a interrogação nos olhos da minha mãe a prender-me o vestido debruçada na amurada, mechas de cabelo a entrançar-se louro-escuro pela brisa, lembro-me que era Verão e o barco balouçava aberto e sem janelas, oleados enrolados a deixar as pingas do rio refrescar o corte do avanço no rumo ao outro lado, onde estarão as fotografias que não sei, do farol só um risco a prumo e ninguém vê nada aqui, podiam aparecer sereias ou baleias que era o mesmo de sempre, aponto ao homem que dorme ao meu lado o chapéu de chuva que desliza e vai caír, acorda no ruído da queda mas não me ouviu, fotografias a preto e branco, todos eles à minha vista e não sabem onde estão.
 
 
 
in Travessias do Rio, Outubro 2015

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Terça de chuva



Fugiram todos, basta um pingo de água e desaparecem, só se sabe deles no piscar dos faróis e farolins, luzes amareladas e vermelhas faísquentas, linhas cromadas infindáveis e ruidosas repletas de uma fúria apressada para engolir o que o precede e depois o outro e assim sucessivamente, fogem todos, querem correr mas não têm como porque vão todos ao mesmo, a cidade transformou-se numa buzina gigante ensurdecedora que nem sequer deixar escutar a chuva a bater na calçada, caminho sem som, o que penso deixa de ser meu pela violação dos sentidos, posso não ser eu sem o saber e terem-me levado confinada para o resguardo do que molha, afinal o chapéu de chuva apertado nos gomos de pano a nada servirá se viajar como cajado, peso-morto, mão-morta, ando mais rápido que qualquer motor e recuperada no que é meu pelo trovão que estala exibo a copa do chapéu a proteger os olhos da inveja do que lhes vejo, cidade lavada, fujo, basta um pingo de água e o medo da alma vir-lhes ao de cima.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Palavras faladas


 
Era como se esboroasse uma fruta conhecida do palato mas na novidade da entrega à boca por dedos alheios, a sede se acalmasse no sumarento, o consolo no doce.
 
Bocados de texto. Era assim que os dizia, não na continuidade como haviam sido construídos como uma teia que se vai montando para a firmeza da sustentação, mas a beleza do inevitável derrube parecia exactamente residir nessas reticências da voz, falava-os e depois calava e depois seguia para outros mais adiante ou anteriores, uma ansiedade nas palavras vestidas de novos sentidos colando pontos finais onde não existiam antes.
 
Ou então era apenas a voz. A sonoridade da tinta permanente azul-china a mostrar a sua fragilidade, pequenas rachas e lascas que se abriam em sulcos mais fundos quando o tom se tornava mais cavo a dizer substantivos que ganhavam qualidade na forma como eram ditos, quase soletrados alguns no intuito de magoar o ouvido.
 
Eu ouvia. E comía as minhas palavras escritas lidas por ele, novas como se não tivessem de mim sido, uma fruta conhecida mas amadurecida em outras latitudes.

domingo, 1 de novembro de 2015

A flor, a árvore, 2007-2015



A árvore ainda tem lembrança de ter sido flor, ainda guarda (alguma) ingenuidade, ainda cresce (mais) na invisibilidade das raízes do que na altura da sua aparente robustez.
 
Apenas só mais um Ano, e tantas folhas já caíram, outras lhe rebentaram e muitas nem passaram de um mero pormenor, quiçá um defeito da casca, nada que se lhe prestasse atenção. Mesmo assim, tudo nela me fez ver, aprender, abrir os olhos à minha reduzida sabedoria de escriba e duvidar, parar e ouvir, ver o que o mundo tinha de simples para na medida das letras minhas conhecidas eu soubesse contar.
 
A árvore a ensinar. Mas também a salvação quando não se consegue dizer, revoltas, verdades da verdade contada em faz-de-conta no verbo construído como muros libertadores de um casulo a esconder a feiura. O sossego, o silêncio, cartas escondidas em troncos mágicos como estórias infantis, só mais uma, só mais um Ano.
 
Até apetecer ter letras e saber aprender como uma flor, depois escrever árvore.
 
 

sábado, 31 de outubro de 2015

Heteronímias



 
Se as contasse faría uma vida. Ou várias. Algumas idas na vontade própria que afinal foi assim que chegaram e assim quiseram ir-se, usando as letras para nada dizerem, fim, ou nem isso, eu que adivinhasse tal como se entranharam na pele e me tiraram o sossego. Três letras ou a quantidade de muitas que houve alguns que sendo parcos na despedida muito disseram ao longo da pequena estadia. São os que lembro melhor, os que me deixaram maior marca, os que não se importaram de eu os lembrar, houve essa intenção decerto ou não tería de bom grado retirado frases do meu corpo para lhes confidenciar a noite em que nos cruzámos no corredor [também não consegues dormir? nada. nem eu. anda, vamos conversar, gastemos as horas], a madrugada a acordar cansada nas costas e de olheiras de vinho bebido a meias aos golinhos para poupar o momento. A estupidez da saudade de quem não sabe que os memoráveis risinhos ainda fazem sorrir e depois amargam, não há porque os escrever de novo, se as contasse seriam monstros no corredor.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Ele há dias que são (sempre) assim



Iniciar, ser interrompida, recomeçar, ser chamada e largar, pegar num novo assunto e esquecer o anterior, despachar o presente, retomar o primeiro e ser chamada, por de lado, atender ao que pedem e dar por finalizado, agarrar pela terceira vez o tema inicial e começar do principio contrariada, analisar, tomar notas, lembrar de casos idênticos com soluções favoráveis, animada e concentrada, elaborar parecer, ser interrompida pelo telefone, resolvido, leitura de tudo o que está escrito, rectificação das letras comidas, versos que não devíam aparecer, estórias que se montam em hora de exercício, companhias que querem usar as mãos para conversar, meias-páginas cheias, meias-páginas vazias, iniciar, recomeçar, dissolver, amalgamar.
Saio.
Volto dentro de 5m quando eu estiver presente.

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A intermitência da narrativa



 
Olho o Tejo à direita, a espaços contentores pintam o cenário com a narrativa de alguém que morreu, um aventureiro, um verdadeiro aventureiro na boca do contador, ao tentar saltar de um para outro, uma distância imensa e uma altura de abismo, terá calculado mal e espapaçou-se cá em baixo de cabeça, não consigo deixar de o ouvir, desligar, acompanho-o na estória, no funeral do outro que não conheci e a quem todos chamavam o Carola [pergunto-me se não sería por ter ideias de merda], tanta gente, tanta flor [Carola, porque já se adivinhava a morte de cabeça para baixo], a mulher e dois filhos pequenos, os amigos do Carola, toda a rua estava lá, e um que ficou depois da meia-noite só com o caixão disputa a continuidade do enredo, olho o Tejo e peço uma crónica mas só o esqueleto da estória alheia se ergue ensanguentado das águas do meu Rio [ o Carola já tinha estado preso por roubo]. Há um silêncio consternado quando o narrador e a sua comitiva saiem. Não terão mais de dezasseis, dezassete anos. A intermitência destas vidas, da do Carola, fará a do meu dia. Um desconhecido que me leva a escrever sobre ele e não sobre o Tejo.
 
 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Folhas brancas



Um e outro hão vir exigir o seu quinhão de comida, depois afagos, ao cão rua no passeio da noite escura. Por vezes há só silêncio, doutras palavrinhas murmuradas que pretendo lhes sejam preciosas na intenção com que lhas sinto, sempre muito focinho roçado, bigodes que se electrificam no toque dos dedos. Seguem-me, observo-os, faço a rotina dos dias, eles recolhem ao sono de barriga cheia.
Este pedaço de paz segue dentro de mim. Tenho vontade de mandar recados ao mundo, à vida, sobre a simplicidade de amar no exemplo desta irracionalidade a quatro pelo chão, uma soma igual a dar e receber sem olhar a variantes do belo ou da riqueza e tantas vezes a oferta sem nada em troca. Nunca serei capaz de escrever o suficiente ou o correcto sobre esta plenitude, levo-a entre as páginas do meu caderno, duas folhas brancas a separarem outras cobertas de letras, sei o que são, o que não sou capaz de dizer, o que aprendo todos os dias e me fazem pequena na ignorância de pertencer a uma raça que se mata por gosto. 
 
 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cena canalha




Aconteça o que acontecer nunca me magoes com a mentira, jura que me dirás sempre a verdade, e davam as mãos e sorríam e beijavam-se muito de seguida a selar a promessa solenemente, quanto tempo passou até chegar o esquecimento nem um nem outro se recordam, tão pouco no acto da infracção tiveram presente as mãos dadas, o beijo, os beijos muitos no olhar aberto e depois fechado a consumar verdades eternas que se revelaram num imenso trambolhão, zás, já era a mentira a verdade e depois de calada é só verdade para todo o sempre. Melhor assim, não se magoa ninguém e nunca se saberá, afinal uma coisa de nada. E depois mais uma de nada e ainda outra e ao fim de pedacinhos tantos de junto, toda a vida era metade de fingir e outra metade feita de um instante de jura de olhos fechados. Até à verdade verdadeira, exposta, descarnada, desfigurada pelos anos a passarem de olhos muito abertos e sem beijos para acalmar. Jura que me enganas e não quero saber de nada.
 
 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº1




Voltar.
Enfrento-me na promessa e engulo duas vezes, bato, sinto a porta a ferir-me o silêncio de ninguém me atender e quase aliviado, desculpo-me para lhe dar as costas e não voltar.
Voltar.
Tinha dito que aqui não regressaria, há coisas que não se repetem, pela dor, pelo que aconteceu e pelo que trouxe do passado ou pelo orgulho de ser homem, bati e ninguém veio, bati e do outro lado cumprem o meu juramento melhor que eu, talvez me escutem e esperem que eu vá para depois de porta aberta reconhecerem o rosto que tantas vezes acolheram de sorrisos, mão esticada na palma estendida a pedir pressa para entrar, na última vez bati com força a porta, não falei, não vieram pedir-me para ficar, só um passo único a imitar os meus hesitante e depois só eu, a barreira da porta, o lá e o cá fora.
O dantes e o voltar.
Insisto, bato de novo na porta e por cada pancada o coração bate mais forte que os nós dos dedos na separação do que quero aproximar, acaricio a dor da madeira e peço que me ouçam, baixo, volto, ou talvez não, só quero que abram e me vejam que estou aqui, afinal estou aqui.
Alguém passa e conta que ninguém mora cá há muito tempo.
 
 
 
 
(in Das portas & janelas-Vol.2, Março-2015)

Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

domingo, 25 de outubro de 2015

A [nossa] hora


 
Vieste desafiar-me, nem horas certas são, ultimamente parecias esquecido do teu papel, folheio o livro a parecer surda aos uivos cada vez mais próximo, tenho sido eu a recordar os nossos encontros, de mulher esqueço-me, habitualmente somos dois a correr ávidos da presa no cheiro ensanguentado dos pensamentos, derrubas-me a leitura mas hoje faço-me difícil, o pêlo molhado arrefece-me na vontade das pernas a partida disparada para te filar no cachaço da surpresa, revelações, a crueza da hora certa em que nos olhamos selvaticamente na expressão do que realmente somos, o que queremos, o que fraquejamos, o medo, a raiva de não abocanharmos um pedaço desejado, os sonhos, atacas-me a garganta, as presas fincadas a trazerem-me até ti. De novo. Sempre. A hora do lobo que se deita a meus pés enquanto me enrosco presa ao meu corpo como se regressasse ao corpo da minha mãe. Vejo-te ir silencioso. A minha mão entalada entre o livro a marcar páginas conta que um instante se passou, só as letras molhadas provam a tua presença.
 
 

sábado, 24 de outubro de 2015

Joelhos à boca




Escola. Calças de fazenda. Com cheiro de lã molhada. E as folhas das camélias muito verdes e muito brilhantes como se tivessem sido envernizadas, só que as árvores estavam despidas, galhos fantasmagóricos como braços muitos fininhos e longos que cresciam assustadoramente à medida das horas a esticarem-se até entrarem dentro da sala de aulas e pegarem nos ombros brancos de batas. Gritos estridentes em silêncio. Para dentro. Só de imaginar. Como uma estória. Sem escrever, sem palavras dentro de um saco de onde se pudessem tirar e colar numa folha, só palavras na boca à medida que íam crescendo e se diziam quando a trovoada fazía mais barulho. Depois só a chuva. A lembrar o ruído de batatas a fritar. Muita água a fritar a calçada e pés molhados a procurarem lagos como palitos de batata que se mergulham. E as árvores lá. Sozinhas. Cheias de frio e sem roupa de lã, sem calças de fazenda a cheirarem a camélias. As camélias não têm cheiro.
Mas eu lembro-me de tudo. Até do cheiro da chuva tão diferente. Eu tão outra.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Explosões



Ficar com a cabeça à roda ou ver-se em latitudes onde o mapa, indecifrável por mais ângulos que se lhe procure não se acha o ponto onde estamos para referenciado apontar-se o norte na bússola louca que gira os ponteiros magnetizada por lembranças de já aí ter passado sem localizar o sitio, é o mesmo que ter bem presente a memória de uma cena passada há uma dezena de anos mas não recordar a refeição do dia anterior. Sabe-se que se comeu mas o quê, onde e com quem parecem ter sido recortados como dispensáveis e supérfluos substituindo minúsculos reavivares de sons de fala e até cores que pareciam de somenos importância. Aparecem como pequenas explosões, perguntamo-nos de onde vieram, porque raio nos puseram a cabeça à roda dispersando a atenção quando nos perguntam onde almoçámos ontem e o esforço para trazer a véspera, compreender o ressurgimento do passado e ainda mantê-lo para acaricia-lo, embrulha-nos o estomago, dobra a língua no silêncio das reticências, coçamos a cabeça. Quem nos interpela perdoa, acha que é senilidade precoce. Mas só acontece aos que muito já guardaram dentro de si, nada a ver com tempo de vida, muito de vida vivida.
 
 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Inconveniência(s)



Que incomodativa. Mal chega para mim e ainda vem esta pôr-se de cotovelos espetados no meu espaço, respirar o meu ar, sem dizer palavra plantou-se, sentou-se, foi-me empurrando de anca e aos poucos no assento ganha-me o lugar. O tempo. O tempo a passar e eu nada. Não faço nada, olho o ar, olho-a e admiro-lhe o silêncio do desplante de me tomar, a progressão da conquista e o destrono da minha concentração, não tem noção da inconveniência e os meus afazeres, a obrigação da hora de serviço, hierarquias, essas coisas do cumprir para cima com nome de compromissos. Olho-a, está ausente ocupando a minha cadeira e eu já de pé ao seu lado, ela na folha branca que rapou das minhas mãos sem eu a ter. Aguarda-me na hesitação da minha fala, esperamo-nos: Eu na cena que assisto, ela por alguém que não lhe chega.
Afinal não há letras no papel, o incómodo dela é ter chegado antes do cenário da partida, ainda cá estou, não seremos duas, há um narrador a contar e por vezes as aparências iludem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O bater do coração (vinte e nove)


 
Terá sido o enjoo do dia ou o transbordo de ruído excessivo ou somente a loucura. Direi, resumidamente como se não prestasse grande atenção que já não quis saber mais porque já nada mais tinha grande relevância quando os rostos se reconhecem à mesma forma, todos semelhantes numa tristeza pintada a um tom sem olhos distintos de outros, ou então, simplesmente porque me apeteceu.
Ergui-me da cadeira bem sentada e nos braços ondulei a imitação do voar, girei em mim, o pescoço alto.
O silêncio musicou a perfeição dos segundos, de seguida vieram as gargalhadas, algumas palmas a fechar a pirueta que ofereci.
Vi-lhes os dentes, a língua avermelhada, o comentário sobre o jeito circense para dispor bem a plateia sisuda e o meu coração agitado pediu recato à pele, à roupa, aos gestos e ao olhar porque ninguém me vira despida nos passos toscos de dança que precisei sentir para não me perder.
Voltei ao que fazia, todos recompostos. Só a veia no meu pescoço, teimosa, insistia em manter-se em palco.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Parágrafo único



Este mundo cada dia está mais feio. E quem o faz assim são os homens.
 
 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Depósitos do cansaço [o custo do começo]



Foi como empurrar um carro. Os pés a resvalar na terra, a gravilha a saltar, e o maldito sem deslizar um milímetro sequer, por mais que as palmas das mãos se apoiassem na convicção do esforço e no ângulo do corpo quase a par com o chão tão próximo, as rodas não rodavam e o monstro permanecia estático, inerte, parado. Parado. Mais uma tentativa. Parado. Até se sentir que a pele do estômago se rasga toda até às coxas e o sexo se estica até desaparecer sabe-se lá para onde, parado. Depois, as mãos suadas e os dentes apertados mais de raiva do que qualquer outra coisa impelem tudo e numa facilidade vagarosa o carro mexe-se, anda pastoso, contrariado, avança, surpresa, apanhamo-lo distraído e de bicos de pés fincados vai-se cravando aos poucos e vencendo cada vez mais a renitência até ligeiros o afastarmos e em definitivo vê-lo caír pela ribanceira.
Custaram-lhe as primeiras palavras, embrulhava-se nelas como uma mortalha a que se apiedava caso quem a escutasse no silêncio de bom ouvinte não demonstrasse desconforto, emoção, um leve encher de peito que suportasse o peso dos segredos. Por vezes engolia em seco para logo a seguir falar rápido em tom de pergunta, mas do outro lado, sem respostas, sem partilhas, sem comunhão, apenas um pedido de seguimento obrigava a que o trilho da fala se retomasse à confidência.
Suspirou, um cansaço profundo porque tudo lhe era importante e não sabía por onde começar, disse.

domingo, 18 de outubro de 2015

Experiências (de são e de louco todos)



Dizía-lhe o nome, uma, duas vezes, à terceira era o primeiro seguido do segundo nome na entoação do se for aí vamos ter aborrecimentos e a resposta era sempre a mesma hum, hum, hum, num crescendo a condizer  com o volume do chamamento até finalmente e num rompante tasquinhar e, violenta, se pôr a pé ou de prontidão ou o que fosse, tudo menos o que fazia que geralmente era nada ou nada era o que se fazia, porque na verdade, a manufactura era imensa, coitados dos curtos de vista que não tinham poder para situar a obra a que se dedicava, construções maiores que o Everest, apenas de palavras ditas para dentro das goelas embrulhadas a cuspo, uma ou outra safava-se no silvo da repetição sonora [com quem falas tu que não me respondes?]
Já vou.
Não foi. Não fui, deixei-me estar no hum, hum, mesmo só havendo pedidos dirigidos a um único nome e escutando-os à primeira, deixei-me ficar para sentir o que sería a reacção do outro lado, sibilei algumas palavras mas nem isso despertou estranheza. Minto, só a minha. Hábitos de quem convive com mais do que um, uma [ouço-te falar, mas sei-te entre os teus outros, tudo tranquilo].
Experiências, refiro e sorrio a desculpar-me [os loucos são sempre os outros].

sábado, 17 de outubro de 2015

Correr, conhecer, conversar


 
Corria, corria muito, tanto, tanto que se surprendía pela autonomia das pernas e da novidade da coisa, aliás coisa já muito antiga porque há muitos, muitos anos que tal não acontecia, tantos que acabou por se estatelar, surpresa da surpresa, uma velocidade ainda mal começada e logo terminada, caçada na mão que lhe deitou as unhas ao casaco. Do resto não se lembra, agora estava ali deitado. Mas não tinha sido um sonho, que acreditassem nele.
 
Tinha ido ao Marquês, aquela grande bolacha onde os carros andam à volta até entontecerem e depois de ganharem corda suficiente para seguirem saiem. Tinha lá ido, grande movimento como sempre, melhor tinham-no levado mas ele conhecia o caminho como a palma da mão, pudera, tantos anos a conduzir para ali, cada buraco, cada esquina, cada boteco, todos os cheiros lhe são familiares. Mas não conhecia o laboratório onde o tinham levado hoje a fazer o exame, que acreditassem nele que não estava enganado e nem tinha sido um sonho.
 
Falei com ele e ele respondeu-me. Achei tão natural como se fosse uma pessoa a responder-me. E quando contei disseram-me que tinha sonhado mas eu não estou tão certa disso, acho mesmo que o gato falou, claro e pausado como sempre o conheci nas conversas que temos.
 
Tanto ele que corria como o que revisitara o Marquês foram aos lugares despedir-se do que tanto sonharam ao longo da vida, por tanto terem vivido realmente esses bocados. É bem provável que me esteja a acontecer o mesmo.
 
 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Sabe-se mas não se vê


 
Insufla-se um derradeiro sopro, ainda o há, maquinalmente os pés poisam nas últimas pegadas feitas, as do próprio ou de outros que copiando o caminho conhecido assim acham facilidades no seguir, tudo vale, olho à direita a minha salvação porque de lá vem onde nasce o sol e quero convencer-me que enquanto tiver a capacidade da descoberta nem tudo vai mal, sejam manhãs frias sejam azuis, a água que rasa a terra como plano dos mortais é para mim a minha imortalidade, aquieto-me, daqui a pouco tempo terei tempo de outros tempos para mim, por agora arrendo-o em troca do que sei, sabem lá eles o que eu sei, todos os segredos que trago, mas também não estão à venda.
Um derradeiro sopro que me veio donde, pergunto, talvez da sabedoria do que não troco e que me foi dada por outros sem perguntarmos na quantidade entregue, salvações, redenção sem perguntas e por isso tanto no peito que sempre se encontra uma réstia que nos empurra suave onde não se encontra a força nos músculos. Tudo essência e leveza, sabe-se mas não se vê.