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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O Meu Diário




Abriu a gaveta e fechou-a.
Assim. Rápido, como se o medo fosse mais veloz que o pensamento, que por vezes até consegue ser e as pernas fogem até bater com os calcanhares no rabo que o medo vem lá atrás a perseguir e quando finalmente se está longe olha-se, olha-se e o medo já se evaporou, só se ouve o tambor do coração. Desta vez, o coração parou-se-lhe, deve ter ficado entalado na gaveta, uma dor ignóbil, a esmigalhar-se entre o fecho de metal e a madeira, o sangue a pingar e no entanto não ouve nada, nada de gritos ou o ribombar do bater como a pedir a salvação do peito ou então caiu para dentro do silêncio da gaveta, uma espécie de caixa selada em que nada se escuta e aí pode muito bem o danado agitar-se, bombear-se até secar sem um pingo de sangue que ninguém o acode.
Devagarinho, um fiozinho de luz a entreabrir a gaveta, um pouco mais... Fecha tudo.
As mãos tremem.
Sabe o que está lá dentro, para quê insistir numa verdade que lhe dói e que condena, voltar atrás, ver o medo outra vez, é como correr de costas e nem velocidade se tem para escapar, que estupidez!
Abre.
Agora está aberta. Toda.
As três palavras a dourado perfeitamente legíveis sobre o caderno forrado a pano florido, já desbotado pelo tempo. Quanto tempo? Não interessa, muito tempo, pensa na correria e no medo e na correria de costas e no medo a engolir-lhe as pernas pelos calcanhares.
Lê as três palavras: O Meu Diário.
Abre à sorte.
Alimenta-se das letras, esquece o medo, sorri, lágrimas molham as páginas, ri, enrola o cabelo no indicador, soletra, volta atrás, suspira, lê alto, fecha o caderno, arruma-o na secretária, fecha a gaveta.
Sente frio, sente medo, sente saudade da rapariga do diário.

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