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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Achados



Tinha serventia mais de adorno do que do substantivo a que fora criada e a verdade é que no dia a que dera assento não lhe cuidaram a fragilidade e partiram-lhe um dos pinos das costas. Deixaram-na a um dos cantos, sitio habitual de estar, na diagonal como enfeite a fazer contorno entre o cadeirão de orelhas, robusto e alargado e o móvel de cerejeira, altivo e encerado. Mantinha uma pequena almofada de veludo macio ao alto a encobrir-lhe a mazela, e à distância era uma bonita cadeira de torneados, lacada e dourada que não perturbava a decoração e dava sempre jeito para uma visita que não se esperava quando os lugares estavam ocupados.
Na realidade, quando tal acontecia todos se precipitavam a gritar Nessa Cadeira Não!, mas não se explicava mais além e só entre quatro paredes se refería a tal objecto como a cadeira velha, a cadeira partida, ou em dias de contemplação como a cadeira de palhinha ou a cadeira lacada. Não mencionavam sequer que o encosto tinha sido partido numa festa de comemoração dos 18 anos do rapaz da familia. Que mesmo de pino quebrado tinha servido de assento a uma noiva para várias poses de retrato. Que naquele canto se sentaram de rosto entre as mãos, à vez, filhos que não voltaram a ver os pais. E finalmente um antiquário que apontou Tiffany e a levou para sempre.
 
Nessa noite em que foi despejar o lixo e viu uma Tiffany ao lado do contentor, apurou a vista e levou os dedos aos pinos do encosto. Quase sorriu. Quase ouviu palmas e gargalhadas e um filme rápido passou-lhe trazendo à pouca luz dos candeeiros da rua uma iluminação da memória que julgava apagada.
Procurou a cicatriz no sitio partido. Nada achou.
 
 

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