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quinta-feira, 31 de maio de 2012

Campo de palavras (4)




Lembro-te, lembro-vos. Despertam-me. Não nos falamos, mas ouço-vos. Sinto as vossas vozes, o timbre que vibra na minha garganta como se vos respondesse às perguntas que não tive tempo de vos devolver, ao café que esfriou na promessa de final de tarde, às diferenças que nos unía no combate da palavra e pelo gosto da discussão poética do silêncio.
Digam qualquer coisa.
Contrariem-me.
É Maio e vocês não estão comigo, não riem dos meus rompantes, não trocamos banalidades pela generosa aventura de saborear o suco da companhia nem eu tenho mais com quem lembrar infâncias de quem me viu menina ou contaminações de quem me conheceu macho. E mesmo assim, Maio. Devíam tê-lo levado convosco... que mo aproveita a mim, senão outra coisa que não dor tão funda no peito, na saudade?
Se ao menos me pudessem escrever.


quarta-feira, 30 de maio de 2012

Falar de amor



Perguntaram-me porque razão deixei de falar de amor, de escrever sobre o amor, histórias de amor com finais felizes ou separações que se desejam não aconteçam. Fiquei a pensar se assim é. Apeteceu-me encolher os ombros, mas suspeitei que a interrogação seguinte dispararía no meu sentido à procura delas: Onde estão? A minha resposta iría para as folhas, as das árvores e as dos cadernos que durante esta hibernação se encheram até encarquilhar, folhas de seivas de amor pelo verbo.
E isso vale?
Vale o que sou, vale os que sou, os amores dos que me saem e não sou mais.
Terei eu desacreditado de tal? O caminho fácil é dizer não sei e arrumar a questão. O caminho poético é acenar na afirmativa e aguardar a condenação. O caminho patético é gritar a plenos pulmões que não.
Que sei eu?
Eu não serei decerto a história que escrevo mas não deixo de ser outros que vivo nela escrita, então não posso negar de todo esse amor, ainda que sentido à distância, ainda que muitas das vezes palpitado como um arranhar de pele que se esfola por dentro e não se quer, não serei eu a heroína mas está na minha mão conduzi-la à saída do labirinto ou levá-la à beira do precipicio.
Amor, amor, histórias de amor, para quê contos de brincar se nos fomos desabituando de nos gostarmos, envergonhados apenas no simples gesto da conversa sem tempo nem rumo medidos?

terça-feira, 29 de maio de 2012

Confissão



Das variadas conversas que temos, há uma e outra que me desagradam profundamente, especialmente porque vindas de ti o seu encaminhar, as levas no rumo directo e certeiro de pausas longas e fulminantes que me calcam os olhos. Sabes como isso me aborrece, tu sabes. E sabendo-o, provocas o incentivo de me levares a paciência ao extremo, gostas de me observar, atento, sempre atento aos meus gestos, aos tiques, aposto que esperas que eu roa a unho do dedo mindinho ou exploda no murro berrado do basta. Mas não, como vês tremo, e aguento-me. Estoicamente, todo rebentado por dentro, ci-vi-li-za-da-mente destruído por dentro, mas sem um grito, um agitar de braços violento, nada de espumar ou partir objectos ao redor, uma aparência calma, não achas? Que te dizía eu? Detesto quando me olhas e obrigas a confessar-me quanto me acho fraco sob esta pele, submisso homem eu que te olho homem tu tão poderoso... Queres trocar, imagem de mim?

in Conversas ao espelho, Nov.2011

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Planos dimensionais



Fugir, escapar de mim, lançar os olhos ao espaço através de chuva que não cai, só posso imaginá-la por dentro em palavras que desenho em linhas que juntei antes para que o verbo se alinhe e não tombe das minhas mãos escorraçado a tinta sépia pela demora em que me perco de mim fora, [quanto tempo já passou desde que fugi e me chamam e eu faço de conta que eu não sou eu e eu sou surda e eu não vejo mais gente feia que morde nas costas de outros como feras insanas de maledicência e escárnios e conjecturas piores que caldeirões de nefastas mezinhas, talvez assim me larguem e me deixem chover] limpido, páginas de branco, grânulo bastante serei eu que me reflicto manchada quando me dobro na evasão de mim e na imitação da natureza quero ser vento, folha, contrariar-me na dimensão da minha pequenez e regresso, [chamam-me, ouço-o, não consigo evitar os meus sentidos, cheiro o meu nome]sentada à minha cadeira de trabalho.

domingo, 27 de maio de 2012

Deixa assim.



Suspirou sem ruído, apenas o peito a dilatar.


- E depois?


Depois nada, não havía nada depois, nada mais, porque tinha de haver qualquer coisa a seguir? Como se à ultima página de um livro se seguisse a capa dura tivesse que haver um acrescento de livro, ou no assoar da palavra fim, o filme prosseguisse na tragédia de quem o roda às escuras ou ainda o coveiro que tapou o morto igualmente o chorasse, a este e a todos que já aconchegou no leito derradeiro, e depois? Depois? Depois de quê? De nada, depois nada para nada, não tem de haver nada, há coisas que não seguem, pois tu não sabes que até as coisas que acabam têm beleza porque assim acabam, porque não têm depois, porque nelas se encerra a profunda tristeza do inicio do fim sem retorno nem recomeço nem direito a repetição porque falso sería o tentar, falso sería o segundo ir, falso sería o depois da primeira. Deixa assim, deixa-me ir, depois tu, depois eu, antes nós.


Suspirou de novo.


No silêncio brutal, ouviu-se o suave passar do tempo a troar pela sala. Incómodo, talvez um ruído viesse a calhar para abafar as palavras que não se dizem e se esperam na interrogação.

Mas não foi capaz, a mala está feita, depois será tarde, a manhã brinca com o coração.

sábado, 26 de maio de 2012

Guloseimas


As novas funcionalidades do Blogger proclamam a facilidade com que se detecta o rasto de quem  passa, o que vê, quanto viu, de onde veio, a que horas visitou, quais as palavras-chave para abrir a nossa casa e mais uma série de coisas fascinantes que não me interessam minimamente, mas decerto farão as delicias a quem gosta de contar ovelhas para adormecer e contabilizar visitas para competir aqui mesmo ao lado no facebook, caso o blog ande pelas ruas da amargura.
Todas estas infinitas maravilhas estão ao dispor através de interessantes estatisticas que "tombam" quando se acede ao menu para se obter o caminho para uma simples mensagem e consequente publicação de texto.
E é aqui que quero chegar, pois SURPRESA!!! dois textos meus com alguns anos, parecem estar no top + já que são solicitados vai para 8 dias consecutivamente.
O AMOR e A BOCA DO CORAÇÃO são verdadeiros rebuçados muito apreciados!
Desconheço se é freguesia fidelizada ou clientela recente, pois só descobri a modernidade das estatisticas por acaso e confessa aqui vos digo, não sinto nada...
Mas cuidado, amantes de açúcar. Cuidado comigo, claro.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Alucinações de uma vida paralela (3)



Tu não sabes de nada. Todos esses conselhos, ares, o dedo esticado, até o sobrolho em tom arqueado mantendo uma ameaçadora atmosfera que poderá servir de escudo defensivo não serve de nada perante mim, ou o que vai dentro de mim, bem podes tentar adivinhar, fazer o numero do inquiridor, pressionar de várias formas que não chegas lá. Por cada vez  que julgas avançar eu afasto-me, desempenho um papel que me é dificil é certo, crer-me assustada cai-me mal, é a custo que me concentro para eu própria acreditar num medo que não sinto pois só ouço o ruído de outros que me falam para te responder. São filmes que se projectam nas minhas costas, ora vilões, ora santos, um caldo que se mistura entre a excentricidade dos condimentos e o requinte da loucura, que faço eu disto tudo? Danço, acabo-me, dano-me. Um dia, as vozes, os filmes, eles e elas hão-de partir ou voltar e ficarem de vez, que se decida, mas eu medo não tenho.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Fados



Daqui avista-se o Tejo, uma imensidão de água azul como mar em dias de sol. Vejo-o eu e a imitação do Arco do Triunfo, ao alto encavalitam-se as estátuas paradas sem conversa, enjoadas por uma justiça que perdeu o tino. O homem de joelho por terra só vê terra, areia, pedra, o martelo e as botas de trabalho de outros que andam por ali largando pegadas ou tropeçando no fio que lhe apruma a direiteza à obra. Ignora o ruído e as beatas fumegantes atiradas cegamente, escuta o seu martelo a picar a pedra branca nos cantos e a desenhar-lhe ancas de mulher que se hão-de encaixar no negro das outras, não há flores penso eu, não há rosas-de-vento para este Tejo e as estátuas estão perdidas, sussurro, o homem endireita a espinha e crava-me os olhos nos meus. Envergonho-me da minha altura. Talvez deva agachar-me. Dobram-se-lhe as costas num arco mais perfeito que o triunfo. Areia, esburaca como um menino, terá os mesmos cem, duzentos anos que o homem antes dele tinha quando também esburacava, acamava pedra branca, ajeitava pedra negra, aconchegava tudo numa terra apertada sem desvios. Muitos a cuspirem, a pisarem, a correrem, a sangrarem. Quando tudo estiver pronto, há-de lá passar com o filho, de mão dada para não se perder por não haver rosas-de-vento, e há-de contar-lhe que cem, duzentos anos atrás um homem igual a si fez aquele chão onde estão agora e até uma mulher que o olhava e falava sem som, deitou lágrimas iguais à água do Tejo.
O meu autocarro só parou ali por um minuto, apenas um eterno minuto.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Por dentro da árvore



Mais um, só mais um, apenas mais um assentar de dedo sobre uma tecla negra onde jaz uma letra invisível que se desfez junto ao digito de tanto a calcar no escuro, às claridades das noites que partem, aos olhos que pestanejam pela alquimia de SS que ondeiam plurais na grandeza do querer bem, do dizer tanto, ainda mais uma a adir a outras que juntinhas são pequeninas, e não acaba, afinal não há fim, afinal minto eu que proclamo não o ser, não será tão só mais uma, mas muitas, todas estas que sei e ainda as que me brotam como ar que me enche e alimenta a seiva dos braços, do pescoço, da raiz do cabelo transpirado por ideias que endoidecem e ninguém entende e nem eu e nem eu as consigo explicar e nem eu tenho já força para conseguir que os outros as entendam e nem eu me importa mais, pois se sou árvore que venham e encostem-se, cocem-se, enfartem-se sob mim, resguardem-se de sóis e chuvas, escondam os vossos temores que eu guardo dos vossos segredos as minhas folhas verdes, as mais novas, as mais tenras, mas não me condenem se alastro raízes e vos passo rasteiras na correría desatenta.
...Até uma árvore precisa de rir de vez em quando.
Só mais um dedo sobre um ponto final. Ponto.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Factos



Do que se escreve quanto será verdade, quanto será inventado, quanto será o desejado, quanto serão as realidades de uns quantos que não de uns tantos outros, quanto serão projecções e desdobramentos de mundos fantasiados de fugas a dores, quantos eus, quanta impressão me faz não ser eu aquele que escrevo melhor escrito no ser desempenhado, ou melhor vivido aquele que respira papel de outros desenhado na ânsia da perfeição, incapacidades. Factos da mortalidade. Tão mais simples rabiscar e contar estórias, atirar-me nos braços das linhas viciantes e deixar-me enredar, enlear, desculpar-me, os meus tropeços são todos do verbo.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O livro negro dos homens (vinte)



Já estive tão próximo deste muro que estive do outro lado, sei de cor o que está para além daqui mesmo  não havendo base, nem pé, nem terra de solo assente medido, só vertigens pedidas com vontades de balanços atrás e saltos. Um único salto a bem dizer. Simples. Tudo se resume à adivinha, ao se, se eu voltasse uns passos à ré que acontecería e se eu corresse avante que acontecería e por aí adiante. Ou nada adiante. Porque afinal o adiante é mesmo ponto final.
Já estive tão projectada num ponto final que fiz do meu ritmo cardíaco não uma linha semelhante a uma cordilheira mas um travessão, um segmento de linha que impõe distâncias, delimita fronteiras e marcas territórios, o da vida e o do que se desconhece, o do outro lado do muro.

domingo, 20 de maio de 2012

Jardim interior



Esperou pelo silêncio, pela escuridão dos interruptores, pela cumplicidade dos botões de rosa fechados à lua de quarto minguante.
Nem sequer era um jardim, não havía espaço, meia dúzia de vasos rachados pelos anos de uso a suportarem hortelã, salsa e coentros, algumas flores de cheiro, um canto reservado a um tanque que já não era e aguentava uma espécie de árvore que se discutía entre um limoeiro ou uma lima pois frutos maduros nunca havía dado e o chão pela falta de tempo, passara do sonho da calçada portuguesa ao duro do cimento, agora vaiado de rachas. Era um quintal, um quintal sem terra, um bocado atrás, um escondido que não se quer mostrar, mas onde ela gostava de estar ao sol nos finais de tarde de Verão ou rente à porta da cozinha a ver a água a caír sem se molhar.

Nessa noite não chovía nem o sol a molhava por dentro. Só as lágrimas lhe escaldavam as rugas da cara, escavando mais fundo os sulcos do coração mastigado. Sem ruído. Sem expressão. Sem suspiros.

Trabalhara durante todo o dia e regressada a casa, preparara o jantar. Comeram. Saíram. Entraram. Deitaram-se.
Ela ficara.
Não havía sido diferente dos demais.
Mas na noite anterior, tinha tido o sonho de que a estranha árvore plantada no tanque, brotara rosas perfeitas em botões fechados como punhos. E por uma qualquer razão que não conseguía explicar, achava que tudo o que havía sonhado se havería de concretizar e toda a sua vida se transformaría e que por cada refeição terminada nunca mais havería de ficar só.
Aguardou que o encantamento acontecesse.
Espreitou por várias vezes o quintal e esperou ver nele o jardim. E a noite profunda desembrulhou-se e o cimento gelou e tudo permaneceu como sempre conhecera.

sábado, 19 de maio de 2012

Musa



Tempos houve em que toda a beleza se completava nas mãos para quando se quería, bastava num relance abrir as palmas e seguir linhas, pintar os olhos nas veias azuladas de tinto sangue para logo palpitarem sorrisos interiores de olhos fechados na luz que ondeavam folhos de muitas saias de sedas antigas ao compasso silencioso de notas estridentes como gritos de pavões solitários em jardins abandonados pelos anos.

Afastou-se.

Depois aproximou-se, mas não muito, não o suficiente para escutar o que ela dizía.

Dois passos atrás de novo.

A paleta de cores à esquerda toda noite, toda veludo azul. Ela na tela equilibrando a solidão da beleza.

Distância, é este o nosso mundo, eu sou a tinta, tu és a imagem, eu sou o contorno do sonho, tu és a mancha da essência.

Afastou-se, ouviu-a agora distintamente. Não quer escutá-la a chamá-lo, se o fizer estará perdido o sonho, o quadro, a música, o jardim, as sedas ficarão farrapos.

Aproximou-se. Tapou a tela. Dias há em que a inspiração foge para outros sitios.




in Telas - Jan.2012

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Manifesto Anti-Descartável


O que está dentro de mim é meu. Só o cedo livremente a quem eu quero, não o vendo nem alugo, dou-o de coração. De outra forma não dou, mesmo que mo peçam e mesmo que se tenham na condição de mo exigirem não dou. Não me dobro a chantagens materiais nem emocionais e prefiro magoar-me a transigir nesta doação. Não aguento a apropriação manhosa do grupo quando só um é que labutou por todos, chamem-me individualista pois sou-o desavergonhadamente. Causa-me repulsa a forma ingrata como se acham no direito de usar do meu tempo, da minha disponibilidade, das minhas vontades, sei dizer não da maneira mais simples que é não sem nada mais, apenas não. Já chega, gastem o vosso tempo, a vossa cabeça, vão ver que não dói nada e nada se gasta, basta pensar. Para quem conseguir. Quem não atingir, azar. Isto não é a Casa Hipólito e não dá para deitar fora e substituír por outra.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Em dia de espiga


Aparecía dentro da alcofa das compras ajeitado por cima dos legumes, os olhos dos malmequeres a sorrirem e a papoila a querer libertar-se sanguínea entre doidos verdes que lutavam em concursos de beleza, a minha mão a tentar amputá-lo para enfeitar o cabelo e a mão da mãe a sacudir-me para longe, pagã e ascenção, era dia de espiga, eu que sempre fui avessa a quintas a encantar-me por já saber ter chegado o instante mágico outra vez, de novo um ano corrido, vamos ver?
Dentro de um saco de pano branco bordado que dizía pão a vermelho e tinha uma espiga verde e outra amarela, a mãe tirava o ramo do ano passado, desfeito, um troço de paus finos e secos, um pão duro como gesso mas sem mácula de bolor ou outra mancha que fosse e uma moeda de tostão. A minha surpresa era tão grande quanto a satisfação da mãe, e de novo e num novo saco de pano branco bordado por ela se repetíam as preces para o ano a seguir em que nada nos faltasse, o amor, a paz, a alegria, a saúde, o pão e o dinheiro para o sustento, selava o ramo de espiga, um beijo num pão fresco e uma moeda de tostão. Depois atava as fitas do saco e lá ía eu pendurá-lo a meias na despensa entre as tranças de cebolas e o ramos de cheiros.
Tudo se cumpría.
Não entendo porque agora deixo o ramo de espiga a murchar no saco de plástico. 

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O bater do coração (doze)



Ainda as longas noites de escuro a chamar de branco para espantar o medo de se ser só na dor do pensar desfiando parágrafos que se iniciam na negação e correm rápidos no sentido do desfiladeiro do passado, um fascinio contínuo por descobertas minusculas, a repetição da pontuação, reticências... minutos mastigados ao redor de idéias que à luz do sol absurdo se desfazem erosadas, talvez tenha sonhado, confusão de quem sou os outros e eu é nele achado como mim própria. Porém, palpitam, fazem barulho, não me deixam dormir, afagam-me.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Erva brava no canteiro


Há gente que de imediato sente uma comunhão natural com o carácter alheio, "eu sou como tu", é o que lhes ouvimos dizer e vão seguindo na natural confirmação do "eu também" acompanhado do pequeno gesto de cabeça que significa que assim é que é, tudo está certo, e depois vem mais um e soma-lhe "eu também sou assim" e acrescenta-se-lhe mais um e outros e mais e todos eles, ordeiros da verdade, são"tal e qual!" mas, no meio da turbe pode acontecer aparecer um que não é assim. Então, só tem duas opções: Nada diz e sai de fininho, que este grupo não é o dele; Torce o nariz e abre a bocarra, "eu não sou nada assim". Bom, há uma terceira hipótese, reservada a uma larga maioria, que são aqueles que não são assim mas também não deixam de ser, vão ficando, vão sendo assim e deixando de o ser à medida dos mais populares, confinados ao que os outros são, nunca ao que eles querem ou desejam. Até os ermos que "não são", solitários calejados pelo convicto "eu sou aquilo que sou", agradando a uns quantos, mal-cheirando a muitos, permanecem na beleza do redor dos fiéis poucos - poucos e seguros - resistentes a ciclos e modas, intemporalmente verdadeiros quando se recusam a ser semelhantes a outrém que não a sua imagem no espelho.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Alucinações de uma vida paralela (2)



Ninguém percebía, ninguém entende, comedimento, está na altura, espelhos servem para ver e os óculos é para quê??? Acaso perguntam ao morto se ele quer morrer naquele instante ou está disponível na semana seguinte? Caíu-me a caliça, o estuque, desmoronou-me a fachada completa, a armação em aço era de cartonado molhado a lágrimas abafadas na almofada, pendeu-me o riso para o poço e nunca mais soube dele. Merda! Medo! Mãe! A elegância das notas em sol sustenido a susterem-me a respiração. Olha que uma mulher não chora, encosta a lingua ao céu da boca e aguenta firme para não estragar a maquilhagem. Fome. Dor. Não chora, não chora, só dói, é tudo um hábito e depois já nem se sente nada, quase se pede por se sentir a falta. Essa é a magia, não haver magia e fazer-se de conta. É tudo a fingir. Fingir-se que se aguenta quando não se pode mais, fingir-se que se é forte quando se é moribundo, flores de papel à que finge ser forte. Um dia foi-se-me o mundo dos espelhos, entreguei-me ao mundo dos homens.  

domingo, 13 de maio de 2012

Sossega

Descansa agora sossega, tanta coisa para falares com elas, se encontrares os meus diz-lhes que lhes tenho saudades, de ti já tenho tantas.
Até, A.F.Trinitá

sábado, 12 de maio de 2012

Campo de palavras (3)


Tantas folhas que se foram. Não da minha árvore, mas destes campos afora, por aí, montes e planícies desertos de muitos de meu gosto, idos, frutos bons de trincar suspensos na madureza do verbo.
Sobraram uns quantos, para meu gáudio restaram aqueles de meu prazer e foram-se de vez os enxertados em pé-de-cabra fazer sombra para outras freguesias não muito longe daqui, onde se acham com mais aplauso no ruidoso do imediato e muita bicheza na assistência.
Que sossego, dá para ouvir as raízes a agarrarem a terra de novo.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Um dia


Sente que o quer, diz que o quer, quando está longe dele diz para si que vai fazer tudo para reparar a situação e ficar com ele mas vai deixando a brisa do tempo correndo morna e assiste, consoante a modulação das vozes lhe permitem e a moderação das lágrimas pressionam. Deixa-se estar. É bom deixar estar, sabe bem, é confortável, não tem que fazer malas, nem acartar pesos: os de mão e os de consciência.
Volta sempre a casa. E ao marido. Que a confronta, que a ameaça que a mata. Que se mata. Que lhe leva o filho de ambos. Aí ela chora muito, ela promete, ela jura que é tudo mentira, ela ameaça que mata o marido se ele fizer mal ao filho de ambos. E vão levando a vida assim.
O marido vigia-a, persegue-a, vê-a com o outro, mas não a deixa ir porque ela não admite e além disso ela é dele, só dele, assim como o apartamento de quatro assalhoadas, a casa de campo, os dois carros, a mensalidade do colégio de luxo do filho de ambos.
Ela gosta do apartamento de quatro assoalhadas pois tem um quarto só dela onde dorme separada do marido. E do colégio de luxo do filho de ambos que lhe permite chegar mais tarde para buscá-lo quando está com ele. Ele.
Ele vive num pequeno apartamento e ganha pouco e gosta muito dela mas condena-se muito por ter uma mulher que é de outro, embora ela lhe diga que não é do marido há muitos anos mas não se consegue separar assim. Assim.
O assim é tudo: é o colégio, é o filho, é deixar o marido que não tem mais ninguém e é preciso ter piedade. É preciso ter assim. Por isso, quando ficou prenhe dele desembaraçou-se que não quería começar uma vida assim. E ele acabou por concordar que assim sería dificil.
Ele então marcou-lhe uma data para ela tomar uma decisão em defintivo. Mas depois disso, já lhe marcou várias.
Sente que o quer, sente que um dia há-de estar com ele, só com ele e o filho e quem sabe, um filho de ambos. Um dia, um dia será assim.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Perguntas sem resposta


Que filão é este, interminável, que se alimenta de si mesmo, que progride à medida que se gasta, que aumenta à medida que parece alcançar o fim, que nunca se esgota mesmo quando me parece acabar de vez com o pensar de tanto nele pensar, de tanto nele esmiuçar por tanto tentar achar um fio de inicio e só encontrar metades, nós emendando outros fios que se enredam noutros fios de pensares e noutros ainda, formando uma longa teia que me enreda numa veste completa e vai-se a ver nada se vê. É tudo de dentro, da alma, do coração, das palavras que acho não conhecer e me saiem pela ponta dos dedos, pela ponta da língua articuladas à velocidade que as mãos (mal) acompanham nos desenhos (muito mal) descritos de letras encavalitadas que (tantas vezes) acabo por ter dificuldades em descodificar tal não é a pressa de as escorrer de mim para fora.
Uma galinha de ovos de ouro que se desmultiplica em gemas de tantos outros de mim que por sua vez tantos outros ovos me exibem nas mãos, partidos, conchas rachadas, miolos que se perdem na intenção fatal de não agredirem a população dos eus, dos pensares, dos nós, dos fios, do fio, do ovo, do eu, do filão.
É tudo inicio outra vez, é tudo verbo, nada acaba e as minhas perguntas sucedem-se, como cabe tanto dentro de mim tão pouco sem rebentar?

quarta-feira, 9 de maio de 2012

(O que se) Lembra



Pediu um café e ela serviu-lhe o café. Alguém lhe perguntou como se sentía ela. Ela esfregou as mãos devagar junto ao peito e ensaiou um sorriso, tirou mais um café e depois outro, que chegara um novo cliente. Ninguém insistiu pela resposta que ficara por dar, dirigíam-lhe cumprimentos, fazíam-lhe os pedidos e adiante que ninguém tinha tempo, o tempo corre, o tempo morde.
A meio da manhã a freguesia abrandou, ela limpou o balcão com o pano branco, enxugou as mãos e respondeu em silêncio como se sentía.
Hoje sentía-se noiva. Ao fim de quarenta e três anos de matrimónio. O último já sózinha, que o marido fora-se sem aviso numa madrugada de hospitais.
Olhou as quatro alianças na mão esquerda, ouro, prata, ouro, prata.
O rádio sempre ligado anunciou as onze, vieram as noticias, ela contou muitas vezes os anéis, lembrou a cerimónia dessa Primavera bonita, coisa simples, eles e as testemunhas que a familia estava longe no Norte. À noite ele levou-a para dançar e dançaram muito e amaram-se muito pela madrugada dentro.
Era assim que se sentía.
-Dá-me um café por favor?
Era assim que se sentía hoje porque o tempo morde, o tempo corre e ninguém tem tempo.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Alucinações de uma vida paralela (1)



Já sem a magia do gira-disco e aquela coisa do arranha-irrita-agarra o disco da agulha, foi-se-me o alucinado do redondo do preto das linhas e os olhos tortinhos a quererem prender a faixa da musica onde a bailarina sozinha e muita fininha não se cansava de braços em balão.
Era tudo morte, eu a morrer por cada vez que o acorde se tornava grave e a solidão me dava socos no estômago e a puta da bailarina cada vez mais nova me deixava cada vez mais velha. Um dia morreu mesmo. O gira-discos, o disco abalou tanto e eram coisas de outro mundo e até eu era de outro mundo, que saudades eram coisas que ninguém entendia e dores de estômago curavam-se com anti-ácidos. Nada mais. Sem magia. Sem arranhar.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Na palma do verbo



Linhas para me orientar.
Linhas para seduzir. -ME.
Duas linhas para não descarrilar.
Linhas e mais linhas e mais linhas para sentir que o sonho se tricota na ponta da caneta à medida que o fio do pensar se desembrulha do peito.
Linhas para não esquecer.
Linhas para esquecer tudo.
Linhas para me salvar. Sempre.

domingo, 6 de maio de 2012

Está na hora



Antes da alba rasgar as cortinas do quarto há-de abrir os olhos e pensar muitas vezes no dia que ainda não é, depois fechá-los-á de novo e de mãos apertadas à dobra da roupa de cama pedirá a um deus só seu em tom fervoroso que lhe permita adormecer e despertar noutra pele, que tudo é pesadelo e esta madrugada que se aproxima de botas pesadas como o soldado que a tomou em flor, marcha para a levar contra a parede da sua própria casa, do lado de fora, com sombras de gigantes onde não há vivos mas só sombras.
O galo dilata-lhe as pupilas e o torpor evapora-se como a noite.
Aos poucos, encharca-se o quarto caiado dos raios da manhã nova, olhos abertos, o berro da criança faminta que ela não quis.
Está na hora.
Foi o que disseram aos seus quando os levaram.
Porque não chegou a dela?

sábado, 5 de maio de 2012

Castelos no ar


Primeiro ensinaram-me que deveria dizer sempre a verdade.
Depois disseram-me que há coisas que não se dizem. E que até há outras que não se devem dizer porque magoam, e ainda umas quantas que se devem contar de forma diferente por piedade.
A seguir aprendi que devo mentir para salvar a pele.
Mas envergonhei-me.
Contei a verdade. Ninguém acreditou. Quando acreditaram, julgaram-me, ofenderam-me e disseram-me que eu era cruel e calculista, incapaz de conviver com os demais e sobretudo nada fiável.
A partir de então calei-me.
Guardei as verdades para mim. As mentiras também.
Quem de mim se aproxima não sabe o que leva, toma o que quer, aceita o que mais gosta, deixou de me importar o que me ensinaram, não sei viver e estou longe dessa morte em vida que tantos apelam como um estado de graça para que outros pungentemente perdoem mentiras que tenham o gosto de verdades disfarçadas.
Faço poesia e sobrevivo.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Borda d'Água



Que fazer dos provérbios tão sabiamente ajuizados por longos anos de observação e saberes, agora que os sóis e as chuvas resolveram mudar o curso das estações diariamente, surpreendendo todos no desprevenido instante da saída de casa, do emprego, na partida de férias em Agosto, na vindima adiada, no tornado que deve ter sido importado das Américas?!
Queixumes à espera da água caída dos céus e impaciências por esta ainda molhar quando a coleção nova ilumina de cores as montras da loja da esquina. Rezinguices pela fruta de nuestros hermanos, sem aroma nem gosto e impropérios pela miudeza das nossas maçãs de Alcobaça irem a repasto de porcos quando há fome ou o euro dispara o quilo na conta. E memórias, e saudades, e relatos de outros tempos em que fazía calor no Verão e fazía frio no Inverno.
Perseguimos uma melancolia continuada, fabricada na nossa própria convicção e insistentemente cega de que nada podemos fazer e nem somos parte desta revolta da natureza, limitamo-nos a aceitar a condenação de deuses poderosos e invencíveis, a manifestar o nosso desagrado, a construír fortificações que nos protejam mais e melhor. Falamos de antigos provérbios aos mais novos, que não os entendem. E por cada vez que faz calor em Dezembro e neva em Abril, abrimos a boca de espanto e esquecemos de ajuizar para cuidar outro provir.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Campo de palavras 2



Regressar a campo aberto, deixar o abrigo das folhas no camuflado das linhas protectoras e correr entre árvores esfolando mãos na casca áspera do descuido do aparente abandono, carece coragem, embalo e respiração presa nas narinas dilatadas pelo coração inundado de tanto sangue. Seivas. Reaprendemos percursos, e ajeitamos no silêncio das carumas secas, caminhos calcados em pés nus e doridos. Faço-me à clareira e espio o raio de sol, a gota de chuva, o rebento novo, um pinhão solto. Qualquer coisa aqui é minha porque nada me pertence, tudo são fios de tinta, coisa imaginada, universo sem tamanho, lá onde mora o horizonte e onde se guardam cores e estórias que cabem dentro de pessoas enormes e outras do tamanho de um dedal. A árvore está desperta e de ramos largos até lhe apetecer.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

To be or not to be



Tenho um mar de dificuldades em reproduzir mensagens das quais não acredito na imagem. Ou porque não a entendo, ou porque é nebulosa, ou porque não concordo. Destas três hipóteses peço mais, quero perceber, quero mais cores e nitidez e quero argumentação para que me convençam. E repito o processo até o prazer da minha necessidade ser satisfeito (sim, o prazer da minha necessidade porque já em criança o habitual "é assim porque eu é que mando" deixava-me estática a aguardar a resposta que repusesse o saber à minha pergunta).
Agora... Se me dizem faça-se!, logo após se ter determinado ignore-se!, que esperam de mim?!
A verdade é que as Ofélias deste mundo se arredam do meu ser como o diabo da cruz e muito sinceramente, não pretendo envenenar-me pelas diarréias mentais de uns quantos que ainda não acharam o sentido do verbo ser. Estar, quero dizer. Sem ser a ocupar espaço e a consumir oxigénio e a paciência de outros. A minha, quero dizer. Que só quero ser eu. Só eu, nada mais.
E essa é que é a grande questão.
Que fará outro texto mais adiante.
E que não tardará muito, cheira-me.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Campo de palavras


Gritos mudos, daqueles em que a boca tanto se abre que nunca mais se cerra, presa, presa para sempre nos parafusos do berro perdido na dimensão de si mesmo, maior talvez que o saco que envolve ossos, membranas e figura. Ruídos da alma, gritos da alma que são silenciosos e estragam por dentro. Dois de um, braço erguido e mão que esmola, todos em mim se fecham nesta boca aberta que tanto querem pôr a mão a sufocar. Se um se modera na voz outro me chega e mais alto ecoa o meu pranto de silêncios, só não vê quem pensa que vê mais que os demais, que nestas coisas o povo tem saber e o cego é mesmo aquele que não quer gritar.