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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O cliente

Entrou. Fez um compasso de espera nas portas empurradas à força do antebraço e esperou que o viessem cumprimentar, indicar-lhe a mesa costumeira guardada no recanto junto ao espelho, a sua, a dele. Mas ninguém lhe dirigiu a palavra e os empregados continuaram para lá e para cá tilintando o abre-latas na pequenina bolsa preta pendurada à laia de avental.
A mesa estava ocupada. Dois rapazes. Vários piercings. Sentiu-se incomodado. Apetecía-lhe uma torrada aparada em pão de forma e um sumo natural. Depois café, cremoso, espesso, daqueles que se debatem até afundar o açúcar. A sua mesa ocupada por estranhos que não respeitavam a alvura da toalha branca, por baixo a grenat.
Quem entrou empurrou-o, vedava a entrada, abancou-se na sua mesa à companhia dos outros dos piercings.
Um empregado perguntou-lhe quantas pessoas mas não olhou para ele e ele não o reconheceu, devía ser novo, senão tería afastado da sua mesa os que a ocupavam como mosquedo na zoada de conversas intraduzíveis.
Ali. Mas ali era ao fundo, perto das casas-de-banho...
Pois que seja, que sem a torrada é que não se abala. E depois, daqui a nada, quando menos esperar, hão-de aparecer caras conhecidas da casa que o conhecem a ele como sendo da casa.
Senta-se. Adiante não vê nada, tem uma coluna. À esquerda a vitrine dos salgados, tão pouco consegue chegar a vista à das artes da seringa nos bolos finos. Atrás, a porta das casas de banho, sem mola, bate tristemente e chega-lhe uma corrente de ar aos pés que lhe lembra o Inverno.
Lança o olhar pela nesga do que lhe foi reservado, uma magra fatia de um salão que busca encantos ao seu homónimo francês. Algumas senhoras de cabelo lilás, uma dignidade gereátrica nas pérolas e nas rendas, artroses que seguram chávenas de chás e espetam dobrado o mindinho. Mas nem nestas peles que se derretem até ao centro da terra reconhece o amigável.
Apela ao empregado. Outra vez. De novo. Está invisivel. Não vai voltar a chamar, olha o relógio de pulso e acerta-o com o da parede. Mal, só vê de raspão. A partir de agora há-de medir quanto tempo passa desde que se sentou até que se apercebam que ele existe.
Nessa altura há-de pedir uma torrada aparada em pão de forma e um sumo de laranja natural.
Não perderá a compostura nem a educação.
Será o mesmo que conhecem desde a inauguração da casa em 1922.
.
(in Eu na Versailles, improváveis escritos, C.G.-Maio/2006)

22 comentários:

Unknown disse...

Olá Gasolina!

Cá estamos. Desta vez, creio que sem problemas. Mas, quem sabe? Tive um ror de chatices com o Google, o Gmail, uma data de porras! Mas, aparentemente os imbróglios estão ultrapassados. Assim seja. De qualquer forma – mudei tudo uma vez mais. Por isso, regista, por favor:

hantferreira@gmail.com

www.aminhatravessadoferreira.blogspot.com

Espero que seja esta a versão definitiva deste meu (e teu) blogue. Já bastou o que bastou. Apenas deixo aqui um propósito: continuar o que já tinha(mos) feito e, da minha parte, tudo fazer para que ele seja ainda melhor do que os anteriores, «mortos em combate» por fuzilamento provisório…

Vem aqui, como já o fizeste nos dois outros «definitivelmente» falecidos na generalidade e na especialidade, enterrados e desgraçados (RIP). Deixa comentários, escreve, colabora, manda fotos – insulta-me se assim o entenderes. Os gordos têm costas largas… Fico à tua espera, com esperança qb e uma pitada de ansiedade. Sal, pimenta e coentros, a teu gosto. Bom apetite. Bem-vindo

abs!

crise disse...

em 1922 ?!

que idade tinha quando começou a ir lá?

Mateso disse...

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía."
Luía Camões



É a lei que a todos toca... !!!!!!!
bj.

Mariazita disse...

É difícil traduzir em palavras o que estas palavras nos causam...
Que é um texto espectacular, sem dúvida!
Ao lê-lo senti qualquer coisa cá dentro, esquisita, desconfortável, que incomoda...
Meti-me na pele do indívíduo, e imagino o que seja sentires-te invisível num local onde és tão conhecido...
Isto só prova que o texto é bom mesmo!
Beijinhos
Mariazita

Estrela da Liberdade disse...

Cara Gas,
Apenas para te dar um beijo, não tenho tido oportunidade de vir aqui nem de te ler, apenas um beijo puro pleno de amizade,
Jean

suruka disse...

Bela narrativa

eu...quero comprar

samuel disse...

Texto terrível!
Começa-se por já não se ser reconhecido... depois vem a total invisibilidade.

Abreijos

Alberto Oliveira disse...

... andaste a retratar a clientela de um tempo que já se finou há muito. Mas que ainda resiste embora quase invísíveis aos olhos da actualidade. Uma tristeza, dirão, pois agora os empregados já nem dobram as costas e solícitos?! lhes ajeitam as cadeiras ou os tratam por Excelência ou Madama. Tão confiantes estavam de previlégios e mesuras que nem deram pela transformação social diante das suas barbas e... buços.
Nem que o "metro" vai chegar a Cacilhas não tarda nada...

abraço e sorrisos.

Carla disse...

às vezes tornamo-nos verdadeiramemte invisíveis mesmo para quem nos vê todos os dias
beijos e bom fim de semana

papagueno disse...

Que bom regressar aqui e ver que a qualidade dos textos continua em alta.
Bjks

Gasolina disse...

Henrique,

Sei bem do que falas!
Houve uma altura que estive sem poder aceder ao blog por três dias! Dizía-me que eu não era reconhecida na minha conta...

Bom, resolvido que está o problema, e anotado o novo caminho até à Travessa, é claro que lá me encontrarás.

Um abraço.

Gasolina disse...

Tri,

Eheheheh!!!

Ele é o espirito da Versailles.

E este micro-conto foi escrito num final de tarde em que apareceu um cavalheiro que de facto, parecía ser quase tão antigo quanto esta afamada pastelaria da Capital.

O triste, é que observado do sitio (privilegiado) onde eu me sentava, parecía que o Sr. era invisivel...

Um beijo grande

Gasolina disse...

Mateso,

Amo esse soneto.
Não só pelo ritmo como pela sua actualidade. É simplesmente belo.

Vida, vidas.

Beijo no teu Azul

Gasolina disse...

Mariazita,

Que grande elogio me fazes, muito obrigado.
Nada é mais compensador para mim do que saber que as minhas palavras fazem "sentir". Nem que seja desconforto.

De facto, o protagonista da história existiu mesmo (pelo menos em 2006!). E era assaz cruel ver como o ignoravam...

Um beijo

Gasolina disse...

Jean,

Tu matas-me!

Mas agora que apareces está tudo bem melhor!

Um beijo Jean of Jeanest.
Com amizade da nossa.

Gasolina disse...

Suruka,

Olá!

Estes "improváveis escritos" estão apenas no meu caderno. Já nem me lembrava deles, uma dúzia talvez. Rabiscados às tardes e à hora do lobo, acompanhada de café e de olhos que "comíam" quem entrava e saía.

Um beijo, obrigado pelo regresso.

Gasolina disse...

Samuel,

É terrível "ser-se" invisivel.
Eu bem vi aquele homem, enorme, a destacar-se entre as mesas e ignorado por um vai-vém de gente que o empurrava, quase o trespassava... não gostei.

Abreijos para ti

Gasolina disse...

Legível,

O teu comentário é diferente de todos os outros, arrancas de um tempo de servilismo o bafiento do passado... gosto que se explore as várias vertentes, se olhe com outros olhos...

Fazes-me sorrir.

O Metro de superficie há-de chegar sim, lá para Novembro a Cacilhas. Por agora anda entre a Faculdade do Monte e Corroios.
Pena que tenham cortado as árvores que me davam sombra nas tardes da minha adolescência... para que o progresso siga caminho.

Abraço a ti.

Gasolina disse...

Carla,

Essa é a pior das invisibilidades: quando tudo é tão rotineiro e costumado que nem se dá pela presença.

Um beijo, óptimo fds para ti também

Gasolina disse...

Papagueno,

Que bom que estás de novo por cá!

senti a tua ausência, espero que nada de grave.

Obrigado. beijo enorme para ti e para o Bairro.

SONY disse...

Gas,

não voucomentar o texto, já sabes o que penso dos teus escritos :-)
Vou dizer-te que regressei ao passado e vi a minha falecida aqui :

"Algumas senhoras de cabelo lilás, uma dignidade gereátrica nas pérolas e nas rendas, artroses que seguram chávenas de chás e espetam dobrado o mindinho."

Sim , sim a esposa do meu falecido avô: o pianista!!!

jito,

sony

Gasolina disse...

Sony,

Obrigado.

Considero as palavras que me diriges como um elogio.
É reconfortante saber que fazemos lembrar alguém que nos é querido, independentemente de já ter seguido viagem.

Muito Obrigado Formiga, beijo grande