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terça-feira, 20 de novembro de 2007

A varanda-História contada em duas metades



(continuação)


Voltaram a pedir-lhe que colocasse o capacete de protecção que já, já íam começar os trabalhos de deitar "aquilo" abaixo. Uma paralisia atacava-lhe os movimentos na vontade de ver partir a história: é que aquela não era só uma história sua, era partilha de várias pessoas, de um tempo de história maior naquela rua, naquela cidade.
Ao primeiro embate da bola de ferro, nuvens de pó apagaram a visão da casa e um estrondo semelhante à trovoada seguido de outros de estilhaços de vidro fez temer quem assistía à demolição, pensando num castigo dos deuses de Olimpo. Quando a caliça assentou num véu branco e fino ele constatou feliz que a varanda permanecía intacta, só uma das colunas impedía que trespassasse a barbárie para o interior da casa e a devastasse dos seus segredos, da sua vida de vidas contida.
Sorriu sarcástico e murmurou "bem feito!".
Sentía-se de alguma forma vingado. Viu-se naquela varanda, do alto da sua adolescência, um bigode mal despontado, cabelo comprido em desalinho, um medalhão ao peito que diz "façam amor, não a guerra" que o pai já lhe recomendou que aquilo é coisa de rapariga, o punho erguido para o céu de Primavera, empoleirado no ferro forjado, a outra mão presa ao varandim descascado por ele em lascas e farpas, e os avós de dentro de casa a chamarem por ele, que isto de revoluções é coisa perigosa e tanta liberdade só vai dar mau resultado.
Gosta de declamar para os avós, mostrando o trabalho que faz com os seus companheiros, uma troupe de saltimbancos pelo País fora a mostrar o que é a alfabetização e a cultura. O avô abana a cabeça e suspira que isto é coisa de comunista... a avó gosta de cravos, sempre gostou e faz grandes jarras, manchando o salão de vermelho.
Sacudiu o pó das mangas do casaco, bateu com os pés, os olhos a arder pela saudade do avô que já se fora: lembra-o a fatiar grandes talhadas de melancia sangrenta, a dar-lhe o coração da melancia, a limpar-lhe o queixo miúdo com um lenço muito perfumado a lavanda que sempre tinha no bolso.
Atirou o olhar semi-cerrado à varanda e viu, nitida, a colcha de cetim negro a esvoaçar num dia de Abril para ver passar o avô uma última vez.
Limpou os olhos, a bola de ferro arremessada grotesca, mais uma vez à casa: esventrou-se o seu interior e água em repuxo começou a esguichar, afastando em correría os representantes da Junta e da Câmara.
Agora a avó regava com esmero os vasos de sardinheiras que por todo o ano floríam... vá-se lá saber como ela conseguía. Viu-a a acenar e a dizer-lhe para ir com cuidado, já ele homem, ela muito velha. Porém os olhos azuis continuavam a ter aquele fulgor de jovem, que ela tinha deixado em herança ao filho seu pai, mas não a ele.
Pensou que tinha pena.
Pensou que cada vez que a bola de ferro desmanchava aquela pirâmide de história, um bocado do seu coração se misturava com os torrões e a caliça e a água enferrujada dos canos.
Tirou o capacete e ignorou os gritos de aviso, dirigindo-se decidido à casa. Olhou a varanda, a pingar um choro que escorría entre as grades de ferro forjado, o mármore agora coberto de pó branco perdera a cor rosácea, nenhum vidro nas portadas das janelas, só um assobio desolador de vento que sopra por dentro da alma da casa a apossar-se.
Abriu a palma como a receber alguma coisa.
Um pau do varandim despencou e ele ágil tomou-o na mão.
Por entre os pedregulhos e destroços que minavam a rua, afastou-se, levando na biqueira dos sapatos rolos de pó que lhe embranqueceram as pernas.


(in Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração, C.G.-13/03/2006)

16 comentários:

SONY disse...

Ainda não li a 1ª metade, e também não é agora que vou poder ler e nem a 2ª!
deixo um beijo pendurado nessa varanda!
Um beijo enorme,
Sony
Fica com jesus.

MIMO-TE disse...

Agora fiquei sem palavras!
Parabéns a ti! Muito bem!:):)

Deixo-te um cravo vermelho e muitas borboletas livres para voar e evoluir.......

Mimos em ti

samuel disse...

Que coisa mais bonita, este texto!

ASPÁSIA disse...

COMO É TRISTE VER RUIR OS RESTOS DE UM PASSADO FELIZ!!

COMO DESCREVES BEM OS PORMENORES E PINTAS AUTÊNTICOS QUADROS EM QUE CADA PALAVRA TEM O SEU MATIZ!

BEIJINHO (ARO)MATIZADO DE CRAVO! :)

AC disse...

Tão bonito Gas...

Quanto te "esticas" percorro-te como o fotografo perante um guião, recebendo com tempo cada nova sugestão tua, e quão ricas são as tuas sugestões...

Como cereja, os canos rasgados encadeados na avó que réga, mas igualmente brilhante é o cuspo enquadrado por bandeirinhas dançantes, ou como um homem estático nos sumariza a historia de um pais.

Gas, tu és brilhante!
(por isso amo essa tua Pena)

De bruços, sobre a poça do meu proprio espanto, sinto nas espaldas o coçar unico do passar da Arte.

Ave Gas

Ps.- malditas letrinhas...

poetaeusou . . . disse...

*
é que aquela não era só uma história sua, era partilha de várias pessoas, de um tempo de história maior naquela rua, naquela cidade.
,
é
,
bji
*

Mateso disse...

Esperei pelo resto. Fiz bem. O tempo cresce na varanda ao ritmo das recordações. Um século, outro que não este, onde o homem ainda crescia no pulsar das emoções...
Gostei , como sempre, aliás.
Beijo.

Gasolina disse...

Sony,

Volta quando te apetecer.
Sabes como detesto obrigações.

Beijos!

Gasolina disse...

Mimo-te,

Aceito as flores, liberto as borboletas, agradeço a tua presença, e fico tocada pelas tuas palavras.

Mimos tb. para ti.

Gasolina disse...

Samuel,

Muito obrigado, sinto-me lisonjeada.
Vindo de um blogger de consciência, sinto o peso da responsabilidade.

Gasolina disse...

ASPÁSIA,

TÃO TRISTE COMO SE NOS RASGASSEM AS MEMÓRIAS.

UM BEIJO ASPÁSIA DO MEU JARDIM

Gasolina disse...

Dias,

Se as minhas palavras te disparam fotografias e as tuas fotos escrevem as minhas palavras, então está tudo certo.

E ergue-te. Senão como te dou um beijo?

p.s.: eu tb. blasfemo quando as encontro por aí. Mas sabes porque estão cá.

Gasolina disse...

PoetaEuSou,

Cumplicidades...

BEI/de MARÉ

Gasolina disse...

Mateso,

Confesso que do livro todo, este foi o conto que mais gostei de escrever.
Talvez porque acompanha uma evolução e ao mesmo tempo aviva-nos a memória para um passado recente.

Beijo para ti.

Mateso disse...

Já agora le nóm, the name, das Namen do dito cujo, do livro, claro está... dize lá...
Beijinho

Gasolina disse...

Mateso,

Está em rodapé:
"Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração"

Beijinhos para ti